O enredo envolvendo os usuários de entorpecentes da cidade de São Paulo ganhou um novo capítulo em 13 de maio, quando as ruas dos Protestantes e Gusmões, localizadas no centro e conhecidas como ponto de concentração da Cracolândia, amanheceram vazias.
Conforme relatos, operações policiais de dispersão teriam espantado os dependentes químicos, que não conseguiram retornar ao local. O esvaziamento foi comemorado por políticos ligados à gestão do prefeito Ricardo Nunes (MDB), mas eleva o risco de espalhar a sensação de insegurança para outras regiões e interromper o atendimento prestado por agentes de saúde aos usuários.
A Cracolândia é um problema que se arrasta há mais de três décadas na capital paulista e perpassa administrações de diferentes partidos. O investimento em políticas de Segurança Pública e ações policiais, contudo, não foi efetivo para resolvê-lo.
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Relatos de violência cometida por agentes de segurança
Após o esvaziamento do ponto de concentração da Cracolândia, o vice-prefeito de São Paulo, coronel Mello Araújo (PL), usou as redes sociais para parabenizar a atuação de agentes da GCM (Guarda Civil Municipal) e demais forças de segurança.
Na ocasião, ao ser questionado pela imprensa sobre o ocorrido, Ricardo Nunes se mostrou surpreso com a dispersão dos dependentes químicos. “Mas, obviamente, a gente já vinha reduzindo gradativamente. Todos os dias vinha reduzindo a quantidade de pessoas lá. As pessoas indo para tratamento, voltando para os seus estados, as pessoas aceitando a internação”, completou.
Por outro lado, movimentos que acompanham a situação da Cracolândia, como a Craco Resiste, contestam a narrativa oficial, pois receberam relatos de que agentes de segurança pública estariam coagindo e agredindo os dependentes químicos para que saíssem e não retornassem ao fluxo.
À IstoÉ, Marcel Segalla, integrante da Craco Resiste e pesquisador da Faculdade de Medicina da USP (Universidade de São Paulo), afirmou que usuários descreveram episódios de violência física e até exibição de imagens de supostos dependentes químicos mortos como forma de coação.
“O regresso das pessoas [ao ponto de concentração] passou a ser impedido. Elas foram violentadas e ameaçadas de todas as maneiras possíveis. Há interrupções repentinas de iluminação pública, e nesses momentos ocorrem espancamentos brutais, pois, sem luz, não tem como as pessoas gravarem“, disse.
Uma fonte ouvida pela IstoÉ sob condição de anonimato teve conhecimento de usuários que estariam sendo agredidos e ameaçados de “serem mandados embora da cidade” caso recusassem tratamento.
A suposta violência física estaria sendo aplicada, principalmente, pela IOPE-GCM (Inspetoria de Operações Especiais da Guarda Civil Municipal), espécie de tropa de elite da guarda.
Durante o mandato de Fernando Haddad (PT), entre 2013 e 2016, a pasta de Segurança Urbana retirou esses agentes da Cracolândia, mas a IOPE retornou na administração de João Dória (então no PSDB), de 2017 a 2020 e, desde então, as denúncias de violência se intensificaram a cada ano.
Por conta disso, os usuários agora se espalham cada vez mais pela região central e chegam às regiões de Santa Efigênia, Campos Elíseos, Santa Cecília e no entorno do Terminal Princesa Isabel.
Um vídeo gravado por um morador da região da República no dia 26 de maio, enviado à IstoÉ, mostra o momento em que um carro da polícia dispersa os usuários de droga do local, que acabam vandalizando alguns comércios ao redor.
Outro ponto que pode ter contribuído para a dispersão da Cracolândia foram as operações de desocupação da Favela do Moinho, localizada no bairro de Campos Elísios. Por meio da atuação da CDHU (Companhia de Desenvolvimento Habitacional e Urbano do Estado de São Paulo), a gestão do governador Tarcísio de Freitas (Republicanos) viu a oportunidade para transformar o local em um parque urbano, e realocar os habitantes para moradias mais adequadas.
Para Marcel Segalla, há uma relação entre ação na comunidade e o espalhamento dos usuários, pois os governos estadual e municipal estariam usando a retórica de que a sede do tráfico de drogas da cidade de São Paulo fica na Favela do Moinho e, por consequência, abastece a Cracolândia.
A fonte ouvida pela IstoÉ tem a mesma visão de que realmente ocorreu uma criminalização da comunidade. “Em todo o bairro pode ter alguém usando e vendendo drogas. Mas a Favela do Moinho inteira, com 900 famílias, ser associada à cena de uso de entorpecentes é porque existe uma especulação, e, nesse caso, caímos na especulação imobiliária”, relatou.
Interesse imobiliário
Outro fator que pode impedir o retorno da aglomeração para aquele ponto do centro da cidade seria a especulação imobiliária. Historicamente, a região central paulista foi associada à classes mais altas, mas o cenário foi alterado nos últimos anos e a região ficou marcada pela presença de lojas ilegais, vendas de produtos piratas e prostituição.
No ano de 2011, o Poder Executivo municipal passou a demonstrar interesse na região e criou o projeto Centro Legal, que visava modificar todas as localidades para elas voltassem a ser consideradas nobres.
Durante a gestão Doria, houve um desejo de renovar o território para chamá-lo de Boulevard Campo Elíseos.
“A prefeitura e o governo de São Paulo atuam em sintonia para retirar os usuários de lá por conta da especulação imobiliária. Compradores de imóveis possuem dívidas públicas e esses imóveis entrarão no estoque do governo e serão concedidos por meio das parcerias público-privadas para as construtoras. Isso irá acontecer agora, com a mudança do Centro Administrativo do Governo Estadual ao lado do Centro”, afirmou Segalla.
Possíveis consequências
O primeiro cenário provável gerado pela dispersão da Cracolândia é a quebra do relacionamento construído com agentes sociais e de saúde. Em seguida, há risco de interrupção dos tratamentos de tuberculose e HIV.
Para Cristina Neme, coordenadora de projetos do Instituto Sou da Paz, há impacto na segurança pública. “Esse cenário pode resultar em problemas com furtos, que causam a sensação de insegurança na população que circula, mora e tem comércio nessas áreas [onde os usuários ficam]”, explicou.
A pesquisadora, por outro lado, destacou que a violação de direitos dessa população em vulnerabilidade não é a solução. “A gestão pública tem um grande trabalho na Cracolândia que deve ser feito a curto, médio e longo prazo, integrando a atuação dos guardas municipais com os profissionais de saúde e assistência social.”
O que diz a gestão municipal
Questionada pela reportagem sobre a dispersão da Cracolândia, a prefeitura afirmou que 1.600 agentes realizam de forma ativa abordagens a pessoas em situação de rua, sendo usuárias ou não, e oferecem acolhimento e encaminhamento a serviços de saúde e assistência social.
Em relação aos supostos episódios de agressão, a gestão de Nunes disse que a GCM presta um serviço fundamental para a proteção de toda a população e ao combate à criminalidade. “Eventuais condutas inadequadas serão apuradas”, concluiu em nota.
Após ter se mostrado surpreso com o esvaziamento do fluxo da Cracolândia, o emedebista mudou o discurso no dia 14 de maio e afirmou que é preciso “comemorar o avanço da prefeitura”. “Não dá para dizer que a gente resolveu todo o problema, obviamente que não resolveu todo o problema. Mas a gente avançou muito e precisa comemorar”.
Já o vice-prefeito Mello Araújo relatou à coluna Entrelinhas, do jornal Gazeta do Povo, que gestões anteriores não quiseram resolver o problema e “trabalhavam para incentivar a Cracolândia”.