Entenda a guerra de narrativas que marca a remoção de moradores da favela do Moinho

reprodução/Governo de SP
Favela do Moinho Foto: reprodução/Governo de SP

A Favela do Moinho sempre esteve presente nas discussões habitacionais do estado de São Paulo, mas voltou a preencher manchetes desde que o governo estadual demonstrou interesse, ainda em 2024, em transformar a comunidade em um Parque Urbano.

A área, considerada irregular, começou a ser ocupada há mais de três décadas e apresenta condições inadequadas para os moradores. Desde sua origem, a favela sustenta um cabo de guerra entre a prefeitura, que busca desapropriá-la, e os habitantes, que lutam pela regularização.

Agora, por meio da atuação da CDHU (Companhia de Desenvolvimento Habitacional e Urbano do Estado de São Paulo), a gestão de Tarcísio de Freitas (Republicanos) pretende reavivar o espaço e realocar os habitantes em moradias mais adequadas.

Porém, apesar de se apresentar como um projeto de interesse mútuo, uma batalha de narrativas tem marcado a relação do governo com os moradores – enquanto a administração estatal garante que a adesão dos ocupantes é massiva, representantes da comunidade expõem um cenário diferente.

Terreno de disputa

A Favela do Moinho é uma comunidade localizada no bairro de Campos Elísios, região central de São Paulo. A ocupação iniciou-se há muitos anos atrás, no final da década de 1980 e começo de 1990. Antes de abrigar a comunidade, o espaço era preenchido por um moinho industrial, construído próximo à Estação Júlio Prestes e à linha férrea da CPTM.

Após a desativação do moinho e o abandono do perímetro, diversas pessoas em situações vulneráveis passaram a povoar a área em busca de abrigo. Estima-se que mais de mil famílias estejam instaladas na favela atualmente. Além das moradias, a região também é centro de pequenos comércios – de onde parte dos habitantes extrai renda.

Com irregularidades que vão desde o saneamento básico à falta de escoamento, o Moinho enfrenta casos de incêndios de forma recorrente.

O cenário é protagonista de disputas entre governo e habitantes desde gestões passadas. Em 2012, por exemplo, quando Gilberto Kassab era prefeito de São Paulo, ele ordenou a construção de um muro que visava isolar a região e impedir o crescimento da comunidade. Na época, os ocupantes da favela quebraram parte da edificação como forma de protesto, argumentando que a murada atrapalhava a evacuação e rotas de fuga.

Entenda a guerra de narrativas que marca a remoção de moradores da favela do Moinho

Mapa da favela do Moinho – Foto: Google Maps

O projeto

Interessado em levar a sede para o centro da cidade, o governo do estado de São Paulo anuncia o projeto de transformação como “a maior intervenção urbana já feita”. Porém, para avançar nos planos, a gestão de Tarcísio precisa ultrapassar um obstáculo essencial: a concessão do terreno, que hoje pertence ao governo federal.

Para oficializar a intenção de construir o parque, o estado de SP entrou com um pedido de cessão em relação à área. Ou seja, uma solicitação formal para que os direitos e obrigações do local sejam transferidos temporariamente para a administração de Tarcísio. A demanda, porém, ainda está em processamento e não tem previsão para ser finalizada.

O ponto crucial da passagem da Favela do Moinho para o governo do estado é a realocação de quem já mora no terreno. Em nota enviada à IstoÉ, a Secretaria do Patrimônio da União (SPU/MGI) confirmou que a solicitação foi aberta, mas enfatizou que a transferência está condicionada “à garantia do direito à moradia das quase mil famílias que vivem no local”.

Segundo a SPU, o processo ainda depende de alguns ajustes, por parte da CDHU, no plano de reassentamento para que contemple as necessidades dos moradores.

“A SPU/SP tem conduzido debates sobre o projeto com o governo estadual, a associação de moradores, a Defensoria Pública do Estado e advogados populares do Escritório Modelo da PUC-SP, que prestam apoio à comunidade”, disse o comunicado.

O que diz o governo

O governo do estado de São Paulo garante que, além de ser um projeto necessário, a transformação da favela do Moinho é apoiada massivamente pelos moradores. Segundo a CDHU, de um total de 821 famílias, cerca de 719 já iniciaram o processo de adesão – o que equivale a 87%. Ainda de acordo com a secretaria, todos os acordos foram voluntários.

No dia 22 de abril, o governo Tarcísio começou o processo de realocação dos grupos familiares. A proposta é oferecer um “cardápio” de moradias financiadas pela CDHU, em que os habitantes devem selecionar o destino do reassentamento.

A maioria dos moradores tem interesse em permanecer na região central, onde já estavam anteriormente. Entretanto, a companhia estadual ainda não soma apartamentos suficientes para acolher todas as demandas, com unidades em construção que podem levar de poucos meses até dois anos para serem entregues. Durante o tempo de aguardo, o governo oferece um auxílio moradia de R$800 por mês.

A gestão aponta ainda um núcleo de criminalidade presente na área, com domínio violento de facções como o PCC (Primeiro Comando da Capital) – ao longo dos anos, diversas ações policiais foram feitas de forma truculenta no local.

Além disso, a CDHU argumentou que as condições de vida da favela não oferecem nenhuma dignidade aos ocupantes e que a ação do estado espera dar “segurança a essa população, que vive sob risco elevado e em condições insalubres”.

Em áudio encaminhado à IstoÉ, o secretário de Desenvolvimento Urbano e Habitação, Marcelo Branco, alegou que “não existe nenhuma intenção do Estado em reprimir ninguém” e que as famílias reconhecem a importância do projeto.

“O que nós estamos fazendo é resgatar a dignidade daquelas pessoas – sem contar em liberdade, ali eles vão ter muito mais liberdade no seu dia a dia e para a sua vida. Então eles já reconhecem como um grande ganho, é um grande avanço para a família”, declarou.

Em relação à perda de emprego e fonte de renda da população – que também participa do mercado local – ele ressaltou que a gestão de Tarcísio tem emplacado programas de realocação no mercado de trabalho, oferecendo “mais de 400 empregos para as famílias”. Porém, lembrou que o foco da CDHU é habitação, e que a ação não envolve indenizações aos comércios.

O que dizem os moradores

Com quase mil famílias alocadas no terreno do Moinho, diferentes opiniões preenchem a discussão popular. Parte dos moradores discorda da versão do governo e diz que cerca de 40% da comunidade não tem condições de aceitar ou aderir à proposta de reassentamento.

É o que contou Yasmin Moja, moradora e representante da Associação dos Moradores do Moinho, em entrevista à IstoÉ. Ela alega que a abordagem das conversas coletivas foi paralisada pela CDHU, que agora está dando preferência pela conversa individualizada, “o que tem gerado sucessivas denúncias de coação e reclamações sobre propostas ditas diferentes das assinadas”.

“Outro ponto de alerta é que vários dos moradores relatam não receber as cópias dos contratos e nem terem permissão para tirar fotos no intuito de buscar apoio técnico antes da assinatura”, explicou Yasmin.

Ela completou dizendo que pessoas alegaram terem assinado documentos sob pressão e coação, além de receberem indicação de declarar rendas diferentes das que recebem.

Por fim, a associação argumenta que a quantia de R$ 800 oferecida pelo governo como auxílio-aluguel mensal está longe de ser suficiente para manter uma moradia na região central. Segundo relatos dos habitantes, o valor do aluguel no centro é de, no mínimo, R$2000.

“Não é suficiente, não existem aluguéis nos valores ofertados ou possibilidades fáceis para moradia na região central, portanto os moradores acabam correndo o risco de voltar para condições precárias de moradia em novas ou outras ocupações”, completou ela.

Em contrapartida, depoimentos de outros moradores que foram veiculados nas redes sociais da CDHU mostram opiniões positivas em relação ao projeto. É o caso de Luan de Araújo Soares, ex-morador do Moinho, que se mudou para um imóvel provisório na zona leste.

Segundo a secretaria, o próprio estado arcou com os custos de mudança e, eventualmente, o jovem será realocado no centro de SP – onde já residia. Ele diz estar feliz com a transferência.

A área do Moinho é sujeita a acidentes e Luan relembra ter presenciado diversos casos de incêndio durante o período em que morou no local. “Isso é algo que sempre foi preocupante. As casas que são tão próximas sempre têm o risco de uma pegar fogo e o resto ir junto”, comenta ele.

Visões externas

Segundo o professor de Geografia Gustavo de Oliveira Coelho de Souza, da PUC-SP, o fato da favela do Moinho estar localizada sob o Viaduto Engenheiro Orlando Murgel e entre linhas férreas pode configurar o terreno como impróprio para moradia no sentido geográfico. Isso porque é difícil garantir acesso seguro dos moradores ao lugar e a alta densidade de moradias implica em um grande número de pessoas cruzando diariamente as linhas dos trens.

Porém, o professor ressalta que não é possível generalizar o fato das áreas serem irregulares do ponto de vista jurídico e associá-las a fatores de perigo. “Existem muitas áreas que foram ocupadas irregularmente do ponto de vista legal, mas que não oferecem riscos à população residente”, argumenta.

Gustavo de Oliveira esclarece que grande parte das terras preenchidas por pessoas em situações de fragilidade apresenta algum tipo ou nível de risco por motivos que ultrapassam a posse jurídica. As ameaças envolvem desde problemáticas sociais (distância, violência, vulnerabilidade econômica), ou físicas (áreas sujeitas a alagamentos ou a escorregamentos).

Para ele, a explicação está na falta de interesse dos agentes imobiliários, cuja prioridade não são as questões sociais. “Isso se deve essencialmente à lógica do mercado imobiliário que ‘não se interessa’ por essas áreas, justamente porque são menos atraentes para o mercado por serem distantes, degradadas, com pendências judiciais ou riscos físicos”, disse.

Em algum momento, a Favela do Moinho deixou de ser interessante para o mercado imobiliário e ficou “disponível” para uma nova ocupação, mesmo sem as adequações básicas requeridas para a fixação de casas.

O professor da USP e vereador de São Paulo Nabil Bonduki (PT) comentou o projeto em entrevista à IstoÉ e reconheceu que a situação do terreno é precária, especialmente pela travessia das linhas férreas. “As condições que estão hoje na área são muito precárias. Eu não defendo a manutenção da situação como ela está, defendo uma solução habitacional definitiva para as famílias”, explica.

Porém, o parlamentar ressalta que um projeto de remanejamento dos trilhos seria uma opção plausível para o local. Nabil diz que “uma solução verticalizada” seria capaz de liberar espaço para áreas verdes – o que combinaria com a intenção do governo estadual de construir um parque no lugar da comunidade. “Uma parte da área poderia virar um conjunto habitacional em meio a uma área verde”, sugere.

Para além das projecções, o vereador defende que, em qualquer caso, deve ser promovido um “trabalho social muito bem feito”, especialmente por se tratarem de famílias em situação de vulnerabilidade.

Por fim, Nabil fala que o governo federal deveria assumir mais protagonismo na trama da Favela do Moinho, especialmente porque o terreno pertence à União.

“O terreno é da União. Ou seja, é um problema que a União trata por meio do Ministério das Cidades. Então acho que é fundamental que o governo federal se envolva mais nesse assunto e não seja um coadjuvante, porque hoje está agindo como coadjuvante do governo estadual. É preciso coordenar uma ação envolvendo o município e o estado”, finaliza.

O que o futuro aguarda

Desde a última semana, famílias que residiam no Moinho começaram a ser retiradas do local e reassentadas em novas moradias. A tendência é que o número cresça, seguindo o número de moradores cadastrados no programa da CDHU.

Apesar disso, as críticas sobre a postura adotada pela gestão Tarcísio continuam a rodar pela comunidade. A representante da associação de moradores, Yasmin Moja, volta a lembrar que o processo social do Moinho deve ser feito com respeito e em consonância com os habitantes.

“Vislumbramos um plano de reassentamento discutido com os moradores, uma política de formação dos habitantes e outra de empregabilidade, assim como o respeito pela nossa história e raízes, garantindo que as pessoas saíssem direto para novas moradias na região central”, termina.