“Estou às ordens, meu capitão”, publicou Michelle Bolsonaro em suas redes sociais após o TSE (Tribunal Superior Eleitoral) condenar seu marido e ex-presidente, Jair Bolsonaro, por abuso de poder político durante a campanha presidencial do ano passado. A condenação tornou Bolsonaro inelegível por 8 anos e o deixa de fora das eleições de 2026.

A frase da ex-primeira-dama sinaliza algo que tem se desenhado nas últimas semanas com o avanço da inelegibilidade de Bolsonaro: uma possível candidatura nas eleições presidenciais de 2026. Com Bolsonaro fora do jogo, Michelle poderia ocupar o vácuo deixado pelo ex-presidente. Mas a situação não é tão simples.

Isso porque, o nome de Michelle tem aparecido com frequência em investigações da Polícia Federal que envolvem Jair Bolsonaro. Apesar de não estar formalmente incluída nas apurações, há suspeitas por parte da Polícia Federal (PF) de que ela esteja envolvida em possíveis ilegalidades.

Os pagamentos de Mauro Cid

Mensagens reveladas pelo portal UOL há pouco mais de um mês mostraram que o tenente-coronel Mauro Cid, ex-ajudante de ordens de Jair Bolsonaro, era orientando a pagar as despesas de Michelle e de parentes dela em dinheiro vivo e de forma fracionada.

Mauro Cid é alvo de diversos inquéritos da PF, que vão dos atos golpistasocorridos no 8 de janeiro a possível falsificação dos cartões de vacinação de membros da família Bolsonaro, incluindo o ex-presidente e sua filha mais nova, em uma viagem aos EUA no fim do ano passado. O militar está preso desde o início de maio.

No que diz respeito a ex-primeira-dama, a PF identificou seis comprovantes de depósitos para Michelle entre 8 de março de 2021 e 12 de maio de 2021, realizados de maneira fracionada e que juntos somaram R$ 8.600,00. Como os pagamentos foram feitos dinheiro, não é possível identificar a origem dos valores.

Ao analisar os dados do aparelho celular de Mauro Cid, foram encontrados recibos compartilhados em um grupo de aplicativo de mensagens usado por ajudantes de ordem que atendiam Bolsonaro e Michelle. O grupo era utilizado por servidores para quitar despesas do casal.

O elo entre a ex-primeira-dama e os depósitos também inclui valores pagos a pessoas próximas, como Maria Helena Braga, tia de Michelle, que, segundo a PF, recebeu 45 depósitos entre 2019 e maio de 2022, que totalizaram R$ 80 mil. Ela estava na lista de pessoas cujo sigilo foi quebrado após determinação do ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal (STF).

“O procedimento em si não é ilegal. Mas é um indício de lavagem de dinheiro”, afirma Fabiano Angélico, mestre em Administração Pública pela FGV-SP e consultor sênior da Transparência Internacional, sobre os pagamentos das despesas pessoais do casal feitos por terceiros. “O usual é a pessoa usar os seus próprios recursos, oriundos de sua própria conta bancária, para pagar despesas pessoais. Mesmo os mais ricos e poderosos, que não cuidam pessoalmente dessas coisas mundanas como pagar boleto, usam recursos de suas próprias contas bancárias para efetuar o pagamento –ainda que ele ou ela não faça o procedimento pessoalmente”, complementou.

Segundo Thiago Bottino, professor da FGV no Rio de Janeiro, a definição de um possível crime depende da origem dos recursos. “Caso fique provado, por exemplo, que uma empresa deu dinheiro para obter algum tipo de vantagem ilícita e esse dinheiro foi utilizado para custear despesas pessoais, seria crime de corrupção. Caso esse dinheiro tenha sido desviado por um funcionário público, seria o crime de peculato.”

Em entrevista à revista Veja publicada em 19 de maio, Michelle admitiu que Mauro Cid pagava suas contas, mas ressaltou que o dinheiro saía da conta de Jair Bolsonaro. “Ele pagava minhas contas pessoais porque era ele que ficava com o cartão da conta-corrente do meu marido. Todo o dinheiro usado pelo coronel para pagar minhas despesas foi sacado da conta pessoal do Jair, dos rendimentos dele como presidente da República. Não tem um tostão de recursos públicos. Temos os extratos para provar isso”, afirmou.

O expediente das rachadinhas

Ao longo dos últimos anos, investigações do Ministério Público do Rio de Janeiro têm demonstrado que depósitos em dinheiro e fracionados são prática constante na família Bolsonaro e que o método pode esconder ilegalidades.

Carlos e Flávio, filhos do ex-presidente, estão envolvidos em apurações que analisam a nomeação e os repasses dos salários de funcionários fantasmas em seus gabinetes na Câmara Municipal e na Assembleia Legislativa do Rio, respectivamente. Os dois casos estão parados na justiça.

Ao ser preso em 3 de maio, a PF encontrou US$ 35 mil (cerca de R$ 175 mil) na casa de Mauro Cid e R$ 16 mil em espécie. Há suspeita ainda de que o esquema envolva uma empresa contratada pela Companhia de Desenvolvimento dos Vales do São Francisco e do Parnaíba (Codevasf), a Cedro do Líbano Comércio de Madeiras e Materiais, já que depósitos do marido de uma das sócias da empresa foram encontrados pela PF na conta do sargento Luis Marcos dos Reis, subordinado de Mauro Cid. Reis também fez ao menos 12 depósitos para a conta de uma tia de Michelle.

“Depósito em valores fracionados e de baixo valor é uma técnica utilizada por criminosos que praticam lavagem de dinheiro. O nome dessa prática é ‘smurfing’ e sua finalidade é não ser detectada pelos sistemas de controle do Coaf [Conselho de Controle de Atividades Financeiras]. Há um indício de crime que justifica a investigação pela Polícia Federal”, ponderou Bottino.

“Ainda que os pagamentos tenham sido feitos com recursos privados pode haver crime aí. Há que se investigar qual a motivação para esse tipo de transação bancária, que é incomum. Veja, esse tipo de investigação, envolvendo pagamentos e transações bancários, busca desvendar dois crimes: o chamado “crime antecedente” (chamemos de “crime 1”), e o crime de lavagem de dinheiro, que é segundo momento (chamemos de “crime 2″). Portanto, se ficar comprovado que houve crime 1, seja corrupção passiva ou outro tipo de crime, e que houve crime 2, há possibilidade de punição”, ressaltou Fabiano Angélico.

Em nota, o ex-secretário de comunicação e advogado de Jair Bolsonaro e Michelle, Fabio Wajngarten, negou irregularidades. “A dona Michelle não conhece esse ajudante de ordens e desconhece que ele tenha feito pagamentos para ela. Contas pequenas, fornecedores informais, necessidades privadas e pequenas compras, o Cid pegava o cartão da conta privada do presidente, sacava e fazia os pagamentos. Ele fazia isso para resguardar a privacidade do tomador de serviço e não expor a intimidade da dona Michelle e filhos. A dona Michelle rechaça qualquer pagamento e qualquer relação dele. A tia da dona Michelle cuidava da Laura e ela repassava pagamentos por conta de ser a babá da Laura”, afirmou.

Ao portal UOL, Vanderlei Cardoso de Barros, identificado pela PF como pessoa responsável pelos depósitos em nome da Cedro do Líbano Comércio de Madeiras e Materiais para o sargento Luis Marcos dos Reis, disse que era amigo do militar, que os depósitos eram um empréstimo e que ele não sabia como os valores seriam utilizados.

O caso das joias sauditas

O nome de Michelle também apareceu nas apurações que envolveram a tentativa da comitiva de Jair Bolsonaro de entrar ilegalmente no Brasil com joias recebidas em viagens feitas à Arábia Saudita em outubro de 2021, avaliadas pela PF em R$ 5 milhões. Os casos foram revelados pelos jornais O Estado de S.Paulo e Folha de S.Paulo.

A ex-primeira-dama teria ficado com um dos pacotes, de acordo com depoimento, acordo com o depoimento de Marjorie de Freitas Guedes, coordenadora do Gabinete Adjunto de Documentação Histórica (GDAH). Ela afirmou em depoimento à PF que, em meados de outubro de 2021, foi aberto um processo no sistema referente aos trâmites relacionados aos presentes. O cadastro, porém, foi aberto ainda antes da comitiva do Ministério de Minas e Energia ter retornado ao Brasil da Arábia Saudita.

O processo teria ficado parado até novembro de 2022, quando o então coordenador-geral do GDAH, Erick Moutinho Borges, informou que os presentes seriam recebidos pelo órgão e incluídos no cadastro aberto no ano anterior – algo que, segundo a testemunha, não era comum. As peças seriam incorporadas ao acervo de Jair Bolsonaro.

O chefe do GDAH na época, Marcelo Vieira, teria determinado que, pelo valor das joias, as peças deveriam ser entregues no Palácio do Alvorada. Posteriormente, um funcionário do Alvorada relatou à servidora que “a caixa com as joias já estava na posse da primeira-dama, Michelle Bolsonaro”. O estojo incluía cinco itens: relógio da marca Chopard, caneta, anel, par de abotoaduras e um rosário. Somente o relógio é avaliado em cerca de R$ 800 mil. O valor total do kit deve ultrapassar R$ 1 milhão.

Tanto Michelle Bolsonaro como o ex-presidente negam irregularidades. A ex-primeira-dama já disse que não sabia do suposto presente e chegou a fazer piada nas redes sociais sobre as joias. Em sua primeira reação pública, Michelle disse estar “rindo da falta de cabimento dessa imprensa vexatória”.

Depois da revelação do depoimento que contesta a até então narrativa de Michelle de não ter conhecimento do caso, a ex-primeira-dama admitiu pela primeira vez saber da existência das peças. À jornalistas, Michelle disse que as joias foram recebidas no Alvorada, porém, negou que as tenha recebido em mãos. Ela disse ainda que “foi tudo feito pelo trâmite administrativo”.

Após depoimento à PF no começo de abril, Bolsonaro afirmou que tentou, de fato, reaver as joias que seriam para a Michelle, mas que o trâmite teria sido feito pelas vias formais. “Entregamos ali o primeiro conjunto que chegou na Presidência. Cadastrei. E, tentando recuperar o outro conjunto da Michelle, foi via ofício, não foi na mão grande”, comentou o ex-presidente. Apesar das citações, Michelle não é investigada pela PF.

O impacto político

Bolsonaro tem dado sinais trocados sobre a possibilidade de Michelle ser candidata à presidência em 2026. Diz que a ex-primeira-dama é ótimo cabo eleitoral, mas que não tem experiência. Por enquanto, Michelle é presidente do PL Mulher, braço do partido voltado ao público feminino.

Fabio Gentile, professor de ciência política da Universidade Federal do Ceará, relembrou outros casos de transferência de votos no eleitorado em eleições presidenciais feitos com sucesso, como Juan Domingos Perón e Evita, e Néstor Kirchner e Cristina, ambos na Argentina, e também entre Lula e Dilma, em 2010.

“No caso específico do Bolsonaro com a esposa Michelle vai depender de algumas variáveis: se Bolsonaro continuar fazer política, mesmo sendo inelegível. Nesta perspectiva, o teste eleitoral para as eleições municipais, no ano que vem, vai ser crucial para entender se o bolsonarismo é ainda um movimento significativo ou se outros líderes mais moderados podem se colocar na liderança da direita brasileira e pleitear a candidatura para as presidenciais de 2026”, afirmou.

Além de Michelle, outros nomes despontam como possíveis candidatos para fisgar uma parte do eleitorado bolsonarista: Tarcísio de Freitas, que foi ministro da Infraestrutura de Bolsonaro e hoje é governador de São Paulo, e Romeu Zema, governador de Minas Gerais. Apesar da falta de experiência, Gentile acredita que Michelle tem seus diferenciais. “Sem dúvida ser mulher e evangélica são os pontos de força de uma candidatura de Michelle.”

Por fim, o cientista político acredita que o impacto das investigações no capital político da ex-primeira-dama vai depender do resultado das apurações. “Se as acusações não se traduzirem em processos e sentencias mostrando que ela é culpada, e, portanto, inelegível, sabemos que os eleitores têm ‘memória curta’. Ela até poderá usar isso para dizer que foi vítima de persecução judiciária e política. É preciso esperar o desfecho dos casos”, finalizou.