Com o corpo coberto por um manto e a cabeça envolta num lenço, a motorista Fátima Dargham Amame, 31 anos, não chega a chamar atenção quando circula, ao volante de um microônibus, pelas ruas do Jardim das Américas, em São Bernardo do Campo (SP). Ao longo do trajeto de 70 quilômetros que percorre todos os dias entre o bairro e uma escola islâmica na capital paulista, Fátima pode até ser alvo de um ou outro olhar curioso. Em São Bernardo, porém, está em casa. Mulheres vestidas como ela são vistas com frequência pelas ruas e pelos shoppings da região. Lá, encontra-se uma das mais tradicionais e atuantes comunidades muçulmanas do Brasil, formada principalmente por comerciantes e industriais de origem síria e libanesa.

Em todo o País há mais de um milhão de seguidores do islamismo, que professam a fé em um só Deus (Alá) e aceitam a mensagem do profeta Maomé. Árabes e seus descendentes formam a maioria dos muçulmanos, mas há fiéis de diferentes origens, inclusive convertidos. Eles têm à sua disposição mais de 100 mesquitas e salas de oração, mas, pela tradição islâmica, podem fazer suas cinco preces diárias em qualquer lugar. A única exigência é que estejam voltados para a direção de Meca, a cidade sagrada do Islã, na Arábia Saudita.

Com 1,3 bilhão de seguidores, o islamismo é hoje a religião que mais cresce no mundo. Para muitos é também sinônimo de fanatismo e terror. Os radicais existem e têm poder de fogo. São, no entanto, uma minoria. No Brasil, embora o fenômeno expansionista não se repita, há reflexos da imagem negativa gerada pela ação de grupos extremistas no Exterior. Espalhada por todo o território nacional, a comunidade islâmica se ressente da má fama. “Vivemos em harmonia, mas é triste saber que algumas pessoas acham que todos os muçulmanos são terroristas e opressores das mulheres”, defende Fátima.

Ela não está sozinha nesta empreitada. Para propagar a fé e manter suas tradições, o Islã tropical conta com 50 sheiks (líderes religiosos), formados em teologia pela Universidade de Medina, na Arábia Saudita. Até há pouco tempo, os sheiks que viviam nessa parte do mundo tinham dificuldade em fazer ecoar sua mensagem. Eles não falavam português, enquanto as novas gerações enfrentavam problemas com a língua árabe, dominada apenas por seus pais e avós. A situação começou a mudar em 1991, com a chegada de cinco “sheiks brasileiros”, como são conhecidos na comunidade, fluentes em ambos os idiomas. Outros dez brasileiros encontram-se atualmente em Medina, preparando-se para assumir postos similares.

Nascido na pequena cidade de Três Rios (MS), filho de comerciantes libaneses, Ali Mohamad Abdoumi, um dos “sheiks brasileiros”, é presidente da Wamy, a Assembléia Mundial da Juventude Islâmica para a América Latina. Entre as atividades do sheik Ali estão aulas de religião para mulheres, nas quais fala de hábitos de higiene e menstruação a ritos purificadores antes das preces. “A religião islâmica é um código de vida, que tem sistema familiar, social, jurídico, financeiro e político”, esclarece. Ele só lamenta que o complexo universo islâmico muitas vezes seja confundido com ações isoladas de grupos extremistas. “Não somos todos terroristas.”

Consultoria – A preocupação em preservar a religião e impedir que ela seja confundida com aspectos culturais de alguns povos seguidores de Alá fez com que os líderes religiosos também se dedicassem a prestar consultoria à autora Glória Perez, que fará referências aos muçulmanos em sua próxima novela. O responsável pelo acompanhamento é o sheik Jihad Hassan Hamadeh, vice-presidente da Wamy, mas a idéia de levar o Islã ao horário nobre não chega exatamente a entusiasmá-lo. “Preferíamos continuar propagando o Alcorão do nosso jeito, no contato direto com as pessoas”, diz. Já que é inevitável, faz parte de sua missão oferecer as orientações que estiverem a seu alcance. “O importante é que os princípios básicos da religião sejam respeitados.”

Conhecidos como os cinco pilares da fé, os princípios citados pelo sheik são: professar que não há outro Deus senão Alá; fazer a oração ritual cinco vezes ao dia; jejuar durante o Ramadã, o nono mês do calendário muçulmano; fazer pelo menos uma vez na vida uma peregrinação a Meca e, finalmente, pagar um tributo de 2,5% dos lucros líquidos. Chamado zakat, o tributo precisa ser distribuído entre os necessitados. As formas de investimento variam. Donos do Hospital Aviccena, na zona leste da capital pautista, 13 médicos de origem muçulmana decidiram há três anos pagar o tributo criando e mantendo uma rede de serviços de saúde em uma organização não-governamental daquela região, o Centro de Apoio aos Desempregados. “Montamos um ambulatório, farmácia e consultório dentário para atender as pessoas necessitadas da região”, conta um dos sócios do Aviccena, Abdul Kader El Hayek.

Dos 13 sócios, El Hayek é o que supervisiona o trabalho da ONG. De todos, ele é também o que segue mais à risca os ritos da fé, tendo feito, inclusive, a peregrinação a Meca. O médico ressalta, no entanto, que é totalmente adaptado ao Brasil. “O Taleban é tão absurdo para o Ocidente quanto para nós”, compara El Hayek, referindo-se ao grupo integrista islâmico que impôs uma ditadura teocrática ao Afeganistão. As médicas que atuam no Aviccena, como a radiologista Iman Zoghbi, 33 anos, também se comportam como quaisquer outras brasileiras. “Os trajes variam de acordo com a cultura”, comenta Iman.

Sem baladas – No resto do País, boa parte das muçulmanas parece ter um estilo de vida similar ao de Iman. Aos 14 anos, a bela Lina Hazem conta que nem ela nem sua mãe usam lenços ou vestes especiais. “Respeito, mas acho que no Brasil não faz sentido”, comenta a garota. Ela mora em Brasília há quatro anos, desde que sua família deixou a cidade onde nasceu, Santa Cruz do Sul (RS), pólo de numerosa comunidade palestina. Estudante da oitava série, Lina lembra que, embora leve uma vida semelhante à de outras garotas de sua idade, não tem permissão para usar saias muito curtas nem “virar a noite” em danceterias.

No enriquecido amálgama nacional, o Brasil ainda abriga muitas famílias “mistas”. Pelas leis islâmicas, uma mulher muçulmana só pode se casar com um homem que adote sua religião. “Isso é para que ela esteja protegida”, explica o sheik Ali. “Se ela tiver algum problema com o marido e precisar de ajuda, os orientadores religiosos não terão ascendência sobre um homem de outra religião.” O homem muçulmano, no entanto, pode se casar com uma mulher que não professe a mesma fé, desde que ela seja monoteísta.

A família do artista plástico tunisiano M’hammed Ben Ali Marzouk vive esta experiência há mais de 20 anos. Muçulmano aplicado, daqueles que saem de casa às cinco horas da manhã para fazer a primeira oração do dia na mesquita, M’hammed é casado com uma não-muçulmana, a engenheira Viviane. O casal tem duas filhas: Sophia e Shedia, de 17 e sete anos, respectivamente. M’hammed sonha que as filhas sigam seu caminho. Aparentemente, não força a barra. “Faço a minha parte, mas cada um tem de respeitar o espaço do outro”, diz.

De vez em quando, Sophia e Shedia acompanham as orações do pai, na Mesquita Brasil. Construída em 1929, ela é a mais antiga da América Latina e, hoje, uma das 14 mesquitas da Grande São Paulo. O Rio de Janeiro, por enquanto, só tem salas de oração. Em 2002 começa a ser construído um complexo orçado em US$ 4,5 milhões, que incluirá mesquita, escola, sede social e esportiva.

Curiosamente, a Bahia tem pouca influência islâmica, embora Salvador tenha direito a sheik e a um centro de divulgação do Islã. O historiador Ubiratan Castro de Araújo, diretor do Centro de Estudos Afro-Orientais da Universidade Federal da Bahia, conta que o discurso de ingresso adotado pelos líderes religiosos lá é o do movimento negro. “Apesar de haver muita simpatia pelo Islã, há também uma grande resistência das mulheres negras baianas, que tradicionalmente são as chefes das comunidades”, afirma o historiador. “O outro ponto é a sociedade afro-baiana, que é voltada para os prazeres e tem uma tradição religiosa muito permissiva.”

O paradoxo é que Salvador teve uma presença islâmica fortíssima até 1835, quando foi palco de uma das mais sangrentas insurreições ocorridas no Brasil. Foi a revolta dos malês, pela qual escravos e libertos queriam proclamar uma monarquia islâmica na região. “A partir daí se instaurou uma política de expulsão dos muçulmanos no Brasil”, lembra o historiador. O resto do País jamais viveu experiência parecida.

Entre a nova geração, mesmo entre os que estudam em escolas islâmicas, essa integração parece ainda mais consolidada. Ao relatar seu cotidiano ao volante de um microônibus escolar, a motorista Fátima conta que, todos os dias, ela e os garotos começam a viagem fazendo uma súplica em árabe, pedindo proteção para a viagem. Em seguida, cantam hinos islâmicos. Depois, as crianças passam a conversar entre si em português. O pequeno Mohamed Omar Orra, de seis anos, deu uma demonstração de seu domínio da língua pátria ao descer do veículo, preocupado em não ter saído na fotografia. “Só tirou foto dos grandes, mano!”, disparou para o repórter fotográfico Hélcio Nagamine. O termo rapper seguramente não foi importado de nenhum bazar do Líbano.

“Namoro, só para casar”

O primeiro contato da engenheira carioca Lilian Muniz Brandão, 30 anos, com o islamismo aconteceu de forma singela, durante uma viagem a Munique, na Alemanha, em meados da década de 90. Nas imediações da casa onde ficou hospedada, Lilian conheceu uma família muçulmana, de origem turca. “Eles me pareciam pessoas tão boas, tão doces, que comecei a questionar a propaganda negativa que existia contra os muçulmanos”, lembra. Instigada com o paradoxo, Lilian passou a pesquisar o assunto até que, no começo do ano passado, matriculou-se em um curso de introdução ao Islã e ao idioma árabe. Em novembro, antes de começar o Ramadã, o mês sagrado dos muçulmanos, ela se converteu ao islamismo.

Lilian integra um grupo cada vez mais visível nas mesquitas nacionais: o dos brasileiros convertidos, que assumem os princípios islâmicos sem ter nenhum vínculo familiar com a religião. Muitos passam, inclusive, a usar nome diferente do que o escolhido pelos pais quando vieram ao mundo. É o caso do vendedor ambulante Décio Vieira, 25 anos, que agora prefere ser chamado de Arif Abdul Aziz. Convertido há seis meses, Arif conheceu o Islã há dez anos, entre comerciantes de Santos (SP). Como o sheik responsável pela mesquita local não fala português, Arif acompanha as orações em árabe, idioma que tenta aprender no mesmo mercado informal em que trabalha.

Na mesquita, aparenta uma compenetração ímpar, seguindo as preces em árabe como se as entendesse em profundidade. Nas mãos, Arif movimenta com firmeza o tasbih, um cordão com contas para orações, usado pelos muçulmanos para evocar seguidamente o nome de Deus. “É a paz”, diz. Embora tenha se integrado há pouco tempo no Islã, Arif já serve como referência para Mohamad, como começa a ser chamado o enfermeiro e estudante de fisioterapia Marcoantônio Barbosa, 27 anos.

Filho de um preparador físico, Mohamad morou oito anos no Catar, uma monarquia islâmica do Golfo Pérsico, onde seu pai trabalhou até 1994. Durante toda a adolescência, conviveu com muçulmanos, em especial com garotos palestinos da vizinhança de sua casa no Catar. Há poucos meses, resolveu procurar a mesquita de Santos, depois de conhecer Arif. Ambos dizem que a religião não atrapalha em nada suas vidas. “Surfo, jogo capoeira”, comenta Mohamad. “Deus não proíbe nada disso.”

Quando o assunto é namoro, Arif e Mohamad adotam um tom para lá de discreto, dando a entender que não gostariam de se envolver, por exemplo, com uma garota habituada a desfilar de biquíni pela praia. Convertido há mais tempo que eles, o motorista Abdul, Luiz Donizeth Pinheiro, 40 anos, expressa apoio tácito para a escolha. Mais extrovertida, a carioca Lilian conta que um dos detalhes mais complicados de seu novo estilo de vida é o namoro. Desde que se voltou para o Islã, ela parou de ir a barzinhos e de sair à noite, embora alguns amigos ainda insistam nos convites. “Agora, só pretendo namorar para casar, com um muçulmano”, garante.

Desde que se converteu, a engenheira passou a vestir roupas longas e largas. Mas só cobre a cabeça com lenços quando se sente à vontade. No trabalho, por causa do maquinário, acha perigoso andar com um tecido solto na altura do rosto. Nas ruas, nem sempre quer chamar a atenção. “Como muitos atentados vêm sendo cometidos por extremistas muçulmanos, até entendo a discriminação”, diz.

Lilian imagina que não ficaria chateada se fosse revistada para ter acesso a um prédio, por exemplo. Pelo menos foi a essa conclusão que chegou ao refletir sobre o assunto, no dia em que uma série de atentados atingiu os EUA. Ela conta que foi alvo de brincadeiras o dia todo, em especial entre colegas da Universidade Estadual do Rio de Janeiro, onde faz um curso de licenciatura. “Que papelão o seu pessoal fez”, reprovaram alguns. “Parabéns, vocês detonaram a América”, teriam dito outros.