Juscelino Kubitschek ficou famoso pelo seu slogan “50 anos em 5”, quando prometeu um salto de desenvolvimento ao País. Cumpriu parcialmente. Jair Bolsonaro disse em 2019 que a missão de seu governo era “desconstruir muita coisa, para depois recomeçarmos a fazer”. Em três anos e meio, cumpriu com eficiência sua meta. O discurso a estrangeiros mirava a herança “comunista” na administração, mas sua ação atingiu o conjunto da máquina pública e programas que demoram décadas para se firmarem.

Os indicadores sociais e econômicos estão mostrando que o País está regredindo até 30 anos. Os dados mais pungentes vieram do 2º inquérito sobre Insegurança Alimentar, promovido pela Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar. Ele indica que 33,1 milhões de pessoas não têm o que comer, o mesmo patamar de 1992. Mais da metade da população (58,7%) convive com a insegurança alimentar em algum grau, um aumento de 7,2% desde 2020 e de 60% em relação a 2018. Estudo da FGV vai na mesma direção. Mostra que a parcela dos brasileiros que não teve dinheiro para se alimentar em algum momento nos últimos 12 meses subiu para 36% em 2021, um recorde na série iniciada em 2006. É a primeira vez que a insegurança alimentar do País supera a média mundial. “Comparando a média simples de 120 países com o Brasil, antes e durante a pandemia, a insegurança alimentar teve um aumento percentual quatro vezes maior aqui, o que demonstra a ineficácia das ações nacionais”, aponta Marcelo Neri, diretor da FGV Social.

FOME Distribuição de comida na favela de Paraisópolis, em março: 33,1 milhões passam fome, mesmo patamar de 1992 (Crédito:Alexandre Schneider)

E os pobres foram os mais penalizados. Em 2021, entre os 20% menos favorecidos, 75% sofreram com a fome, alta de 22 pontos percentuais em dois anos. O Auxílio Emergencial levou a uma montanha-russa na renda, mas o benefício se exauriu. No ano passado, houve um acréscimo de 7,2 milhões de pobres em relação ao ano anterior, e de 3,6 milhões em relação ao nível pré-pandemia. “O atual governo desajustou a política de assistência social, um retrocesso de uma década”, afirma Neri.

A emergência da Covid agravou o quadro, mas são os problemas bem conhecidos da atual gestão que provocam efeitos deletérios: desmonte de políticas públicas, enfraquecimento das instituições, piora no cenário econômico e acirramento da desigualdade social. Boa parte das mazelas são causadas pela alta da inflação, que voltou a patamares que haviam sido registrados pela última vez em 2003. O índice de abril teve a maior variação para o mês desde 1996. Os investimentos e o consumo das famílias retrocederam a 2015. A indústria, a 2009. A produção de veículos voltou ao nível de 2006. E o PIB está no mesmo nível de 2013, segundo o IBGE.

Bolsonaro frustrou quem imaginava que faria uma gestão reformista. “Tivemos uma expectativa muito grande antes da última eleição presidencial, de reformas tributária, administrativa e previdenciária. Existia uma projeção de que o crescimento da economia viria com um Estado mais eficiente”, diz a economista Claudia Yoshinaga, da EAESP-FGV. Segundo ela, tudo isso se frustrou com o abandono das mudanças. “A pandemia piorou muito a perspectiva de crescimento que já não estava acontecendo”, afirma. “A retomada pós-pandemia não está sendo tão rápida, a renda disponível reduziu-se absurdamente. A gente tem hoje um cenário bastante complicado e desanimador para ser revertido.”

“O governo desajustou a política de assistência social, um retrocesso de uma década”
Marcelo Neri, diretor da FGV Social

Evasão escolar regride 14 anos

Na educação o quadro é o mesmo. Segundo o diretor da FGV Social, a taxa de evasão escolar da faixa de 5 a 9 anos voltou ao nível de 14 anos atrás. Houve um agravamento nas desigualdades durante a pandemia, invertendo a tendência ao crescimento e à equidade. Os alunos das séries iniciais que tinham obtido os maiores avanços nas quatro últimas décadas foram os mais penalizados. O retrocesso está principalmente ligado à pandemia, pondera Olavo Nogueira Filho, diretor executivo da ONG Todos Pela Educação. “Mas a pergunta que deve ser feita é: tais efeitos poderiam ter sido atenuados?” Sem dúvida, responde. Ele afirma que o que comprometeu uma resposta mais adequada foi a ausência do governo federal, que não só contribuiu para alongar o quadro na Saúde, dificultando a reabertura das escolas, como também lavou as mãos para a coordenação que deveria ter feito junto a Estados e Municípios. “Mesmo agora, no pós-pandemia, a tônica é praticamente a mesma”, condena. Além disso, o governo segue investindo energia para aprovar o ensino domiciliar. “É absolutamente inacreditável. É um governo que enxerga no Ministério da Educação um instrumento para fins que nada têm a ver com melhorar a qualidade do ensino.”

No meio ambiente, o recuo é histórico. Em maio, a Amazônia teve o maior número de incêndios desde 2004, segundo dados do INPE. O desmatamento anual médio na região aumentou 75% em relação à década anterior. Essa reversão tirou do País um dos poucos títulos em que era líder, já que esteve na vanguarda da agenda mundial de sustentabilidade ao sediar a ECO-92. Trinta anos depois, o País virou um vilão ambiental. Isso para não falar da erosão da própria ordem democrática. Há poucos anos, era inconcebível imaginar-se o retorno à ditadura. Hoje, o presidente estimula atos que pedem a intervenção militar e ameaça abertamente o próximo pleito. Nesse caso, a derrocada é ainda mais grave. É a própria Constituição, promulgada há 34 anos, que está sob risco.