Em 116 anos de história republicana, passaram
40 nomes pela presidência do Supremo Tribunal Federal: entre eles quatro José, três Luiz, dois João, um Orozimbo, um Aliomar – e, a partir de março, uma Ellen Gracie. Pela Presidência da República, foram outros 40 nomes: dois Manuel, dois Artur, dois Fernando, um João, um José, um Juscelino, um Getúlio – e, a partir de maio, uma Ellen Gracie.

A primeira mulher a galgar, num espaço de dois meses, o posto máximo em dois Poderes da República será Ellen Gracie Northfleet, uma carioca de fala mansa mas firme que completa 58 anos na quarta-feira 16. Quando o presidente Luiz Inácio Lula da Silva embarcar para Viena, no dia 12 de maio, para o Encontro de Cúpula América Latina/União Européia, Ellen Gracie vai atravessar a Praça dos Três Poderes e assumir por 48 horas o comando do Executivo. Os outros três sucessores constitucionais de Lula – o vice José Alencar e os presidentes da Câmara dos Deputados, Aldo Rebelo, e do Senado, Renan Calheiros – estarão impedidos de assumir o cargo por força da lei eleitoral, que impõe a desincompatibilização a partir de 1º de abril.

Em junho e julho, voltará a subir a rampa do Planalto, quando Lula for a Buenos Aires, para a Cúpula do Mercosul, e a Guiné Bissau, para o Encontro da Comunidade de Países de Língua Portuguesa. Serão viagens curtas, mas o País vai perceber uma mudança histórica de gênero na tradição essencialmente masculina do poder. “Nem vou sentar na cadeira do Lula”, avisou Ellen Gracie a um amigo, confirmando seu marcado low-profile, traço de vida como advogada e juíza. Ao contrário do viés político de Nelson Jobim, de quem receberá a presidência do STF no mês que vem, ela se voltará à gestão e administração do próprio Judiciário. Primeira mulher a chegar ao Supremo, por indicação de FHC em 2000, revela nos olhos cor de mel e nos cabelos loiros impecavelmente aprisionados num coque a firmeza e a disciplina que herdou com o sobrenome do bisavô americano, um oficial confederado sulista que migrou para o Brasil após a derrota na Guerra Civil americana. O velho Northfleet trocou o Rio de Janeiro pelo Rio Grande do Sul, onde casou, teve cinco filhos e perdeu toda a fortuna numa mina de carvão. Setenta anos depois, a bisneta Ellen Gracie fez a mesma rota, com resultado diverso. Trocou o Rio por Porto Alegre, onde se formou em direito na Universidade Federal, em 1970 – dois anos depois do estudante Nelson Jobim. Apesar da ebulição política da época, não integrava correntes políticas nem saía em passeatas contra a ditadura. Colegas da época a definem como “liberal e moderada”, sem cor ideológica.

“Somos advogados por causa dela”, lembra um companheiro de classe na UFRGS, o advogado Fábio Bittencourt da Rosa. O terror da escola era o professor de direito internacional privado, Elmo Pilla Ribeiro, que reprovava todo mundo. Ellen Gracie teve a pachorra de gravar todas as suas aulas, transcrevê-las e distribuir as apostilas entre os colegas. “Naquele ano de 1970, nenhum dos 60 alunos de nossa turma rodou”, conta o agradecido Fábio. Atenta à burocracia da Justiça, Ellen Gracie se pauta pela gestão administrativa. “Ela se preocupa com os ‘tempos mortos’ entre a decisão do juiz e a publicação da sentença”, conta Teori Zavaschi, ministro do Superior Tribunal de Justiça, que viu sua colega no Sul adotar o computador para encurtar os espaços. Uma preocupação que se transferiu para o STF, onde cada um dos 11 ministros recebe, por dia, 12 novos processos para julgar. Em nome da celeridade que dissemina justiça, Ellen Gracie é devota da súmula vinculante, remédio para estancar as manobras que eternizam as causas: “Não há país no mundo com a quantidade de recursos em cascata como o Brasil”, reconhece. O olho administrativo não embaça sua visão política: “As deficiências do Estado criam uma pressão indevida sobre o Poder Judiciário”, observa, lembrando que 70% da carga de trabalho da Justiça no Rio de Janeiro advém de processos contra prestadores de serviço do Estado.

Separada, mãe de Clara, uma advogada de 25 anos que trabalha em Porto Alegre, Ellen Gracie divide o enorme apartamento funcional do STF, na Asa Sul de Brasília, com seu fiel Joy, um cãozinho da raça west highland terrier. Ali, caminha e anda
de bicicleta nos fins de semana e, numa academia próxima, faz ginástica com pilates. Reserva os ouvidos para ópera, Villa-Lobos e os shows de cavaquinho no Clube do Choro. Contrariando seu passado sulista, não gosta de chimarrão e troca um gordo churrasco pelas opções light e verdes da cozinha natural. Apesar de viver mais de 30 anos numa terra dividida entre o azul e o vermelho de Grêmio e Internacional, Ellen Gracie chegou lá com 18 anos e optou pelo Cruzeiro, um pequeno clube que já morreu e virou cemitério. “Não gosto de fanatismos”,
avisa a futura presidente do Brasil.