Trump ressuscita fantasma das bases militares no Panamá

A obsessão de Donald Trump por retomar o controle do canal do Panamá colocou em apuros o presidente de centro-direita José Raúl Mulino, um aliado natural, e reacendeu no país centro-americano o temor de um retorno das bases militares norte-americanas.

Com o argumento de que Trump quer recuperar a via interoceânica da “influência chinesa”, o chefe do Pentágono, Pete Hegseth, assinou na semana passada com o governo de Mulino um acordo para que os Estados Unidos possam deslocar tropas em áreas adjacentes ao canal, que construíram e entregaram ao Panamá em 1999.

Durante mais de duas décadas, após o desmantelamento das bases que protegiam o canal, Washington tem realizado regularmente manobras no Panamá. Mas o que muda desta vez, e por que esse pacto está causando desconforto em um país com uma longa e difícil relação com os Estados Unidos?

– As bases militares estão voltando? –

Embora o acordo não mencione “bases militares”, Washington poderá, segundo o pacto, manter no Panamá uma força de rotação de longo prazo, como a que tem na Austrália e em outros países, para “treinamento”, “exercícios” e outras manobras.

Por três anos, prorrogáveis indefinidamente, será permitido o deslocamento de um número indeterminado de tropas em três bases (aérea, aeronaval e naval), construídas quando os EUA mantinham um enclave na zona do canal.

“Há uma violação flagrante” da Constituição panamenha, que proíbe bases estrangeiras, e dos tratados de 1977, que estabelecem a “neutralidade” do canal e que apenas o Panamá terá forças militares em seu território, afirmou à AFP Euclides Tapia, professor panamenho de relações internacionais.

Mas esses tratados deixaram uma brecha: “Permitem que os Estados Unidos defendam o canal quando considerarem que ele está ameaçado”, lembrou à AFP o analista Will Freeman, do Conselho de Relações Exteriores, com sede em Nova York.

Benjamín Gedan, ex-diretor para a América do Sul do Conselho de Segurança Nacional da Casa Branca, assegura que o Panamá tem cooperado com os EUA nessa “corresponsabilidade” pela segurança do canal.

O advogado Arturo Hoyos não vê violação de leis nem de tratados, pois o acordo não implica uma presença militar estrangeira “exclusiva”, mas sim operações “conjuntas”.

– Mulino em apuros? –

O governo defende que, diferentemente de uma base, as instalações e os terrenos pertencem ao Panamá e serão de “uso conjunto” pelas forças de segurança panamenhas e norte-americanas.

Mulino sustenta que não cedeu “um centímetro de soberania”, apesar de Hegseth ter pressionado por “bases militares”.

O acordo é um “ponto médio” porque “limita as táticas de pressão e a hostilidade do governo Trump e talvez o alcance das concessões” feitas pelo Panamá, opinou Freeman.

“O risco que ninguém está calculando, pelo menos os Estados Unidos, é que, ao humilhar Mulino”, acabem diminuindo sua capacidade de governar, acrescentou.

No Panamá, choveram críticas. O ex-candidato presidencial Ricardo Lombana acusou Mulino de “camuflar” bases militares e disfarçar a “rendição” como “cooperação”.

“Os Estados Unidos nos recolonizam e reocupam”, afirmou Julio Yao, que assessorou o governo panamenho nas negociações dos tratados de 1977.

Gedan, professor da Universidade Johns Hopkins, acredita que os panamenhos “não estão dispostos” a aceitar o retorno de bases norte-americanas devido ao trauma causado pela ocupação da zona do canal e pela invasão de 1989 para derrubar o ditador Manuel Antonio Noriega.

A cientista política Natasha Lindstaedt, da Universidade de Essex, no Reino Unido, comentou à AFP que a pressão exercida por Trump sobre países como o Panamá “pode causar divisões” dentro dos governos sobre como “lidar” com Washington.

– O que Trump realmente busca? –

Os Estados Unidos consideram que a empresa Hutchinson, de Hong Kong, que opera dois portos nas extremidades do canal, representa uma “ameaça” à sua segurança.

“Trump quer minimizar o risco de que Pequim bloqueie o canal para impedir a passagem de navios militares em um eventual conflito”, afirmou Gedan.

Lindstaedt concorda que “isso faz parte de um conflito maior: os Estados Unidos tentam conter a influência chinesa no Panamá e na região”.

Segundo Freeman, Trump “provavelmente tenta demonstrar que, se quisesse, poderia fechar o canal ao comércio chinês”, por exemplo, para que a China “não invada Taiwan”, ilha que considera seu território.

“Estamos vendo no Panamá a doutrina Trump da paz através da força”, comentou.

Mas outros não acreditam na ameaça chinesa. “Ela é inventada como justificativa. Dizer que o Canadá faz parte dos Estados Unidos, ou que se apoderarão do canal e da Groenlândia, é uma parafernália voltada à opinião pública americana”, opinou Tapia.

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