Operação desvendou esquema de corrupção na Petrobras que beneficiou políticos e empreiteiros. Figuras de relevo foram condenadas, mas excessos abriram espaço reversão de decisões e soltura de presos. O início da Operação Lava Jato completa dez anos neste domingo (17/03). A investigação desvendou um esquema de corrupção envolvendo o desvio de recursos em que doleiros lavavam o dinheiro obtido por empreiteiras em contratos superfaturados com a Petrobras e repassavam parte dos ganhos a diretores da estatal, políticos e partidos.

Os crimes foram cometidos de 2004 a 2012. O aprofundamento da investigação levou à descoberta de irregularidades com os mesmos métodos envolvendo contratos fraudados em obras no Rio de Janeiro, São Paulo e até nos estádios da Copa do Mundo de 2014. Em 7 anos, a Operação teve 79 fases e culminou com a condenação e prisão de figuras relevantes do cenário político nacional e também de empresários.

+ “Duas faces da Lava Jato motivam sua atual revisão”

Ao longo do processo, a apuração mobilizou uma força-tarefa de procuradores. Contudo, erros, excessos e vazamentos levaram a recuos e reversão do resultado de julgamentos, com a soltura de presos, desmembramento de processos em diferentes instâncias e anulação de condenações. Sob a gestão do ex-Procurador-Geral da República, Augusto Aras, o modelo da força-tarefa foi encerrado em 2021. Dez anos depois, no saldo da Operação que desvendou o esquema na Petrobras, nenhum político permanece preso.

Estopim da investigação

A primeira fase da Operação Lava Jato, em março de 2014, recebeu esse nome, pois os agentes da Polícia Federal prenderam o empresário Carlos Habib Chater, dono do Posto da Torre, no Distrito Federal, pela suspeita de lavagem de dinheiro e desvio de recursos em lavanderias e postos de combustível. Ele foi apontado como cúmplice do doleiro Alberto Youssef, preso na mesma ação, mas por delitos no Paraná.

Os investigadores descobriram que Youssef comprou um carro de luxo para o diretor da Petrobras Paulo Roberto Costa. A Land Rover seria o pagamento de propina. Assim, a apuração se ampliou: as fraudes não se restringiam a irregularidades no Lava Jato, mas alcançavam contratos com petrolífera.

Diante da proporção que a investigação tomava, o ex-procurador-geral da República, Rodrigo Janot, decidiu instituir uma força-tarefa de procuradores do Ministério Público Federal (MPF) que se debruçaram sobre os processos relacionados à Lava Jato. O procurador Deltan Dallagnol coordenou as atividades do grupo até 2020.

Presos por decisão do juiz Sergio Moro, titular da 13ª Vara Federal de Curitiba, que tratava de crimes financeiros, Youssef e Costa, que foram presos, firmaram acordos de delação premiada. O depoimento deles incriminou outros executivos, empresários e políticos e as informações prestadas embasaram a deflagração de novas fases da Operação. A estratégia para desvendar o esquema foi depois criticada, pois as provas apresentadas em parte dos depoimentos das dezenas de colaborações prestadas por outros investigados eram frágeis, e ainda assim embasaram investigações.

Em maio de 2014, o então ministro Teori Zavaski, do Supremo Tribunal Federal (STF), decidiu que os autos dos processos da Lava Jato deveriam ser remetidos à Corte, já que parlamentares com prerrogativa de foro foram citados. Outros processos foram distribuídos para tribunais no Rio e Brasília.

As empreiteiras

A apuração apontou práticas de corrupção envolvendo um grupo de 16 empreiteiras: Engevix Engenharia, OAS, Odebrecht, UTC, Camargo Correa, Techint, Andrade Gutierrez, Mendes Júnior, Promon, MPE, Skanska, Queiroz Galvão, Galvão, Iesa, GDK e Setal. Elas teriam se associado em um cartel para evitar a concorrência por contratos de engenharia com a Petrobras.

Para garantir que as construtoras fossem vencedoras da licitação, as empreiteiras pagavam de 1% a 5% dos valores dos contratos. Os valores eram repassados em espécie aos operadores financeiros do esquema – doleiros – que movimentavam contas no exterior que lavavam o recurso por meio de contratos falsos com empresas de fachada. Em seguida, o dinheiro era repassado ao beneficiário final: executivos da Petrobras ou políticos.

As empresas acusadas de crimes também decidiram colaborar, e assinaram acordos de leniência para prestar informações sobre o caso e se comprometeram a devolver valores desviados. As informações levaram à deflagração da 7ª fase da Operação, a Juízo Final, que culminou com a prisão de empreiteiros. Em março de 2016, Marcelo Odebrecht e Otávio Marques de Azevedo, da Andrade Gutierrez, e Gerson Almada, da Engevix, foram detidos.

A Controladoria-Geral da União (CGU) julgou 11 das empreiteiras inidôneas, e foram impedidas de manter contratos com o poder público. O BNDES por sua vez deixou de financiar as construtoras. Até a eclosão da Operação, as empresas contrataram R$ 57,5 bilhões em crédito, que não foram repassados.

Políticos

As primeiras prisões de políticos na Lava Jato ocorreram em abril de 2015, no âmbito da 11ª fase da operação, chamada de A Origem, quando foram presos os deputados André Vargas, Pedro Corrêa e Luiz Argôlo. Em setembro, Vargas foi condenado por corrupção e lavagem de dinheiro.

Em outubro de 2016, a apuração chegou ao ex-presidente da Câmara, Eduardo Cunha (PMDB-RJ), que se tornou réu em inquérito no Supremo, suspeito de receber propina em contratos da Petrobras na compra de navios-sonda.

No mês seguinte, a Polícia Federal deflagrou a Operação Calicute, que identificou uma série de fraudes envolvendo as construtoras investigadas na Lava Jato e contratos com a secretaria de Obras e da Saúde no governo do Rio de Janeiro. O beneficiado foi o então governador do estado, Sérgio Cabral (PMDB), preso na ocasião.

Ex-presidentes também foram se tornaram alvo dos investigadores. Foi o caso de Fernando Collor de Mello e Michel Temer, além de Luiz Inácio Lula da Silva. Lula foi preso em abril de 2018, depois de ser condenado por Moro por lavagem de dinheiro e corrupção passiva no caso da reforma do tríplex bancada pela OAS como pagamento de propina. Em 2016, o MPF pediu, e Moro autorizou, a condução coercitiva do petista para que prestasse depoimento.

A Procuradoria-Geral da República ainda denunciou no PMDB os senadores Edison Lobão, Jader Barbalho, Renan Calheiros, José Sarney, Romero Jucá e Valdir Raupp, também favorecidos com o esquema de fraudes. Raupp foi condenado no STF, assim como Nelson Meurer, do PP.

Interlocutores dos partidos

Interlocutores dos partidos também foram presos e condenados: o ex-tesoureiro do PT, João Vaccari Neto, foi detido por receber vantagens indevidas a partir dos contratos fraudulentos com a Petrobras. Mais um nome do PT que foi detido foi o ex-ministro da Casa Civil, José Dirceu. Ele foi condenado por receber propina por meio da Diretoria de Serviços da Petrobras.

Mais um petista preso foi o ex-ministro da Fazenda Antônio Palocci. Em outubro de 2018, às vésperas das eleições, o ex-juiz Sergio Moro retirou o sigilo da delação premiada de Palocci. Ele alegou que Lula sabia do esquema de corrupção na Petrobras e que teria recebido imóveis da Odebrecht. A medida gerou críticas de atuação política do juiz.

Já pelo PP, foi preso o ex-assessor do deputado federal José Janene, João Claudio Genu, que também recebeu valores ilícitos destinados ao partido.

Diretores da Petrobras

A apuração demonstrou que os diretores da Petrobras eram indicados por partidos políticos: PT, PMDB e PP. A propina chegava às legendas por meio dos executivos. Por isso, em janeiro de 2015, Nestor Cerveró, que comandava a Diretoria Internacional da Petrobras, foi preso, assim como seu antecessor, Jorge Zelada. Na 10ª fase da Operação, Que País é Esse?, foi a vez do ex-diretor de Serviços da Petrobras, Renato de Souza Duque ser detido. Mais um preso foi o ex-presidente da Petrobras, Aldemir Bendine, acusado de receber R$ 3 milhões da Odebrecht para favorecer a empresa em contratos com a estatal.

Desdobramentos

A investigação de ilegalidades cometidas na Petrobras levou à descoberta de outras práticas de corrupção no setor elétrico. A 16ª fase da Lava Jato, batizada de Radioatividade, se debruçou sobre obras da usina nuclear de Angra 3, no Rio de Janeiro, cuja licitação teria sido fraudada mediante do pagamento de propina a agentes públicos. A ação levou à prisão do presidente licenciado da Eletronuclear, Othon Pinheiro, que promoveu o acordo.

A apuração de irregularidades, que coletou informações dos acordos de delação premiada e acordos de leniência, alcançou ainda a construção de estádios para a Copa do Mundo de 2014 no Brasil. Segundo o Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade), o conluio entre as empresas teria fraudado licitações para obras da Arena Pernambuco (PE), Castelão (CE), Arena das Dunas (RB), Fonte Nova (BA) e a reforma do Maracanã (RJ).

Outras construções também se tornaram alvo de investigação pela suspeita de mesma prática de desvio de recursos, como obras de revitalização do Complexo do Alemão, Complexo de Manguinhos e Comunidade da Rocinha. As construtoras ainda se mobilizaram para vencer de maneira fraudulenta a licitação pela construção da ferrovia Norte-Sul e da integração da Leste-Oeste.

Dinheiro recuperado

Segundo o MPF, cerca de R$ 14,5 bilhões podem ser recuperados após a tramitação e julgamento de acordos de colaboração e leniência que ainda estão em curso.

O ministro do Supremo, Edson Fachin, relator dos casos da Lava Jato na Corte, divulgou um balanço da atuação do Supremo nas ações relacionadas à Operação. Segundo o gabinete, os acordos de colaboração premiada com os envolvidos no esquema resultaram na recuperação de R$ 2 bilhões aos cofres públicos.

A Petrobras tem sido restituída em várias parcelas ao longo dessa década de atuação da Força-Tarefa. Segundo a estatal, pelo menos R$ 6,1 bilhões foram devolvidos até 2021. Em 2019, a Força-Tarefa do MPF em Curitiba tentou constituir um fundo privado para gerir R$ 2,5 bilhões depositados pela estatal em uma conta da 13ª Vara Federal. O valor corresponde ao valor pago pela empresa para evitar um processo judicial nos Estados Unidos. A medida foi alvo de questionamento na Câmara dos Deputados e barrada pelo STF. Para o ministro Alexandre de Moraes, havia o risco de “desvirtuamento” na gestão dos valores.

Condenações revertidas

Em novembro de 2019, o STF decidiu que réus só podem começar a cumprir a pena depois que todos os recursos judiciais sejam esgotados. A decisão do colegiado alterou o entendimento anterior, de 2016, e que previa que os condenados poderiam ser presos antes do fim do trânsito em julgado. A medida beneficiou condenados pela Lava Jato.

Com isso, após 580 dias encarcerado no prédio da Polícia Federal em Curitiba, o presidente Lula foi solto. Em seguida, se livrou dos processos judiciais depois que Moro foi julgado suspeito pelo STF. Em 2022, ele voltou à cena política, disputou as eleições e retornou ao cargo de presidente para um terceiro mandato.

Sergio Cabral é outro nome de relevo da política que foi condenado, preso e depois libertado. Em dezembro de 2022, a segunda turma do STF revogou a prisão preventiva do ex-governador, detido por uma decisão da 13ª Vara de Curitiba, que o julgou culpado de receber propina da Andrade Gutierrez para beneficiar a construtora em contratos para obras no Comperj. A defesa argumentou que ele foi preso antes de se esgotarem todos os recursos.

Os advogados de políticos buscam no STF a liberdade dos condenados, e têm obtido vitórias. Desse modo, não restam políticos presos como resultado da Lava Jato. Em 2022, o STF também anulou a condenação do ex-deputado Eduardo Cunha. Ele deixou a prisão depois de cinco anos na cadeia.

Outros condenados que foram libertados são: o ex-ministro Henrique Eduardo Alves (suspeito de receber propina na obra da Arena das Dunas), o ex-ministro Geddel Vieira Lima (condenado por esconder R$ 51 milhões em espécie, que seriam lavados). João Cláudio Genu, operador do esquema na Petrobras para o PP, e o ex-ministro José Dirceu (PT) também foram libertados por decisão do STF depois das condenações.

Derrocada

As solturas se somaram aos reveses que a Lava Jato acumulou em 2019. Naquele ano, Sergio Moro deixou a magistratura para assumir a vaga de ministro da Justiça do ex-presidente Jair Bolsonaro, o que gerou questionamentos sobre sua parcialidade na atuação nos casos da Lava Jato.

Em julho, a Polícia Federal deflagrou a Operação Spoofing, que reuniu provas obtidas a partir de ataques hackers aos celulares de autoridades públicas envolvidas na Lava Jato. A troca de mensagens entre Moro e Dallagnol pelo Telegram, reveladas pelo The Intercept Brasil, apontam a coordenação entre os dois para obter resultados nas decisões do processo.

Eles expressaram preocupação com o possível retorno do PT à presidência. Em 2018, Fernando Haddad disputou a vaga com Bolsonaro, já que Lula, preso, foi impedido de concorrer. Logo após a revelação das conversas, o plenário do STF considerou Moro parcial na ação penal em que condenou Lula pelo recebido de propina da OAS na reforma de um tríplex no Guarujá (SP). Com isso, todas as decisões de Moro no caso foram anuladas.

Além disso, Fachin declarou que a 13ª Vara de Curitiba era incompetente para julgar os processos de Lula (além do caso tríplex, também o do sítio de Atibaia e do Instituto Lula), pois não teriam relação com a corrupção na Petrobras. Esse, aliás foi um argumento usado pela defesa de vários condenados para questionar as decisões de Moro.

A OAB também questionou a conduta junto ao Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP) e alegou que procuradores omitiram nomes de autoridades com foro privilegiado nos processos para evitar que os casos investigados por eles fossem remetidos a cortes superiores.

Em 2020, Deltan Dallagnol deixou a procuradoria e em 2022 se elegeu deputado federal. Foi cassado em maio de 2023 por uma decisão do Tribunal Superior Eleitoral (TSE). O tribunal considerou que Dallagnol pediu exoneração do cargo para se livrar de sindicâncias sobre sua conduta na Lava Jato, e assim, se livrar de possíveis condenações que o tornariam inelegível.

O Congresso Nacional, por sua vez, aprovou mudanças na legislação. A nova Lei de Abuso de Autoridade ampliou o escopo das práticas consideradas abusivas (em que o autor se beneficia ou prejudica um outro), e as sanções podem ser aplicadas não só a agentes dos Três Poderes, mas também do Ministério Público.

Em 2021, o ex-procurador-Geral da República Augusto Aras extinguiu a força-tarefa, cujo trabalho foi absolvido pelos Grupos de Atuação Especial de Combate ao Crime Organizado (Gaecos).