Lojas de segunda mão e serviços de reparo de eletrodomésticos russos lucram com alta demanda. Por que os russos querem economizar? E o que o fato tem a ver com a guerra na Ucrânia?O interesse em lojas de consignação e de segunda mão, e em serviços de reparo de eletrodomésticos está crescendo em toda a Rússia. Por causa do aumento acentuado do custo de vida, cada vez mais cidadãos estão deixando de comprar roupas, calçados e outros itens novos. De acordo com especialistas, estão recorrendo a alternativas mais baratas. Os jovens russos, em especial, gastam menos em viagens, entretenimento e artigos de luxo em tempos de instabilidade econômica.
Economia no estilo soviético
Em 2024, a inflação na Rússia foi de 9,52%, significativamente maior do que a previsão do Banco Central, de um máximo de 8,5%. As tentativas das autoridades de conter o aumento dos preços, incluindo um aumento na taxa básica de juros, tiveram pouco efeito. O economista russo Igor Lipsiz está convencido de que a real taxa de inflação anual é mais de sete vezes superior à oficial.
Em sua opinião, a economia russa está cada vez mais parecida com a da antiga União Soviética, que era voltada para as necessidades militares. Na época, fundos consideráveis foram canalizados para o setor armamentista, e as questões sociais ficavam em segundo plano. Nas condições econômicas instáveis de hoje, só quem oferece reparos ou revenda de produtos usados estaria confortável, de acordo com o especialista.
Demanda por itens de segunda mão
Andrey Fedotovsky, presidente da Associação Russa de Lojas de Comissão e proprietário da cadeia de butiques Komilfo para roupas de marca de segunda mão, observa que a demanda por artigos de luxo usados também está aumentando. Essa tendência já era aparente antes do início dos "tempos econômicos difíceis".
Entretanto, as sanções e a retirada das marcas ocidentais do mercado russo, devido à guerra de agressão da Rússia contra a Ucrânia intensificaram a tendência. Os proprietários de produtos de marca caros querem recuperar parte de seu gasto revendendo-os, e os compradores veem aí uma oportunidade de comprar produtos de luxo a um preço mais acessível.
Fedotovsky aponta que os preços das lojas de segunda mão também aumentaram de 8% a 9%, o correspondente à taxa de inflação. Entretanto, esse aumento não se compara ao de novos produtos de marca que chegam à Rússia por meio de importações obscuras, contornando o revendedor ou agente autorizado pela marca.
"Mas a tendência de revenda de roupas de marca também faz parte de um desenvolvimento global em direção ao consumo consciente e ecologicamente correto", ressalva o empresário. Devido à crise econômica, até mesmo os russos ricos estão mudando para uma economia circular e preferindo comprar produtos usados.
Fedotovsky ressalta ainda que a demanda por itens de luxo revendidos aumentou, especialmente em regiões onde surgiram novas oportunidades financeiras, graças aos aumentos salariais em empresas de defesa, por exemplo. "Os salários mensais foram aumentados para 200 mil a 300 mil rublos (R$ 12,5 mil a R$ 18,7 mil)."
Conserto como alternativa
Devido ao aumento dos preços de novos produtos, especialmente importados, os russos preferem consertar aparelhos antigos em vez de comprar novos. Isso provocou um aumento desses serviços, o que, por sua vez, reduz o desperdício e minimiza o impacto ambiental.
Um dos beneficiários dessa demanda é a Avito, uma plataforma fundada para a troca de mercadorias entre pessoas físicas. Atualmente, ela é uma das maiores varejistas online da Rússia, com um faturamento de 1,9 bilhão de rublos (R$ 119 milhões) em 2023, o que é comparável aos balanços patrimoniais das principais empresas russas de varejo online.
A Avito também tem registrado um aumento significativo no interesse em serviços de reparo. O número de anúncios para o conserto de eletrodomésticos aumentou 45% em 2022 e 64% em 2023. A demanda pelo conserto de máquinas de lavar e secadoras aumentou de forma particularmente significativa: 181%, conforme relatado pelo jornal russo Vedomosti. Ao mesmo tempo, o interesse no reparo de computadores caiu 30%, o que os observadores atribuem a problemas na importação dos componentes necessários, devido às sanções ocidentais.
Ambientalistas elogiam a tendência
As organizações ambientalistas também estão observando um interesse crescente em produtos usados e de segunda mão na Rússia. Representantes da Associação de Ecologia e Proteção Ambiental Razdelnyj Sbor (Coleta Seletiva de Resíduos) registram que a difícil situação econômica russa está mudando os hábitos dos consumidores, o que é uma oportunidade para um consumo mais consciente.
Mais de 78% dos têxteis que acabam no lixo na Rússia ainda seriam adequados à reutilização ou reciclagem: "Cerca de 20% das famílias na Rússia não podem comprar roupas novas, e centenas de quilos de roupas são jogados fora todos os dias nas grandes cidades", diz Irina Shasminova, da Razdelnyj Sbor. Ela também observa um leve aumento no número de visitantes das feiras de trocas beneficentes organizadas por sua organização.
Apesar dessas mudanças positivas, a crise econômica da Rússia está tendo um impacto negativo sobre a gestão de resíduos, observa Anna Garkusha, da Razdelnyj Sbor. Muitas empresas que processam matérias-primas secundárias estão tendo dificuldade para consertar os equipamentos necessários, devido às sanções. Alguns centros de coleta de lixo também tiveram que fechar devido a problemas financeiros e à falta de apoio do Estado. "Por exemplo, o aluguel de uma unidade em São Petersburgo aumentou tanto, que ela está tendo prejuízo", diz a especialista.
Ela ressalva que os problemas econômicos estão diminuindo o entusiasmo popular pelas questões ambientais: "Em primeiro lugar, a reciclagem pode custar mais do que a produção original, o que, em última análise, torna o produto mais caro." Por isso, Anna Garkuscha atribui a maior demanda por consertos de eletrodomésticos e roupas de segunda mão mais à situação econômica e menos a uma conscientização crescente sobre a proteção ambiental.