Presidente americano sugere realocar palestinos e assumir controle da Faixa de Gaza. Tratados internacionais proíbem ações como deslocamento forçado e tomada de território à força.O plano do presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, de deslocar palestinos, demolir edifícios e transformar a Faixa de Gaza em uma "Riviera" sob "propriedade" americana pode ter sérias implicações legais sob o direito internacional.
O presidente americano não descarta o envio de tropas para "assumir" o território devastado por mais de um ano de guerra e coordenar uma reconstrução forçada. Ao anunciar a proposta, Trump foi questionado diretamente se falava em controlar um território soberano. Ele foi taxativo ao responder que propõe um "controle de longo prazo" sobre Gaza.
Obrigar pessoas a deixarem suas terras e tomar territórios à força são ações proibidas por tratados internacionais. Estes acordos incidem inclusive sobre Gaza, mesmo o território palestino possuindo apenas status de "Estado Observador Permanente" na ONU.
Entenda como a proposta pode violar o direito internacional.
"Assumir o controle da Faixa de Gaza"
"Os EUA assumirão o controle da Faixa de Gaza e faremos um bom trabalho com ela", disse Trump na última terça-feira (04/02). "Eu vejo uma posição de propriedade de longo prazo."
AFaixa de Gaza é reconhecida pelas Nações Unidas e sua mais alta corte, a Corte Internacional de Justiça, como parte dos territórios palestinos sob ocupação militar israelense. Isto cria uma série de obrigações perante tratados internacionais como a Quarta Convenção de Genebra.
O direito internacional proíbe a tomada de território pela força, o que é definido como um ato de agressão. "Todos os membros devem abster-se, em suas relações internacionais, da ameaça ou do uso da força contra a integridade territorial ou a independência política de qualquer Estado", diz a Carta da ONU.
"Em última análise, a proposta do presidente Trump equivale a uma rejeição flagrante dos princípios fundamentais do direito internacional que vigoram desde, pelo menos, o fim da Segunda Guerra Mundial e a adoção da Carta da ONU", disse o professor assistente de Direito Internacional dos Direitos Humanos Michael Becker, do Trinity College, em Dublin.
Se os Estados Unidos reivindicassem a Faixa de Gaza, "isso equivaleria à anexação ilegal de um território. Israel também não tem o direito de ceder território palestino aos Estados Unidos", disse Becker.
Janina Dill, diretora do Instituto Oxford de Ética, Direito e Conflitos Armados e especialista em direito internacional humanitário, defende que não há circunstâncias que autorizem o uso da força para "assumir" ou "tomar" um território, conforme os termos usados por Trump.
"O argumento de que isso beneficia as populações no local ou em outro lugar é juridicamente sem sentido, mesmo que fosse factualmente correto."
De acordo com a Carta da ONU, a responsabilidade de identificar atos de agressão e responder a eles cabe ao Conselho de Segurança, no qual os Estados Unidos são membros permanentes e com direito a veto.
A agressão também é um dos crimes que podem ser julgados pelo Tribunal Penal Internacional (TPI). Os Estados Unidos e Israel não são membros do TPI, mas o tribunal tem jurisdição sobre os territórios palestinos, inclusive sobre atos cometidos em Gaza por países que não são membros.
É com base nessa prerrogativa que o Tribunal emitiu um mandado de prisão contra o primeiro-ministro de Israel, Benjamin Netanyahu.
O diretor do curso de Direito Internacional e Estudos Constitucionais Internacionais da Universidade de Cambridge, Marc Weller, também defende que Trump não tem autoridade legal para realizar tais planos. "[Ele fala apenas como] um magnata do setor imobiliário que pode assumir o controle de um terreno baldio abandonado e transformá-lo em um oásis como a Flórida", disse em entrevista à DW.
Para Weller, a população de Gaza tem "direito à autodeterminação e, em última instância, à condição de Estado".
"Mas aqui, é claro, não se trata de um território vazio. Esse é um território que pertence aos palestinos, seja como um Estado, se você acha que já é um Estado, ou como uma entidade autodeterminada, que tem o direito de formar um Estado em todos os territórios palestinos, o que inclui Gaza", continuou o professor.
"Israel não tem o direito de se desfazer deles. E Trump não tem absolutamente nenhum direito de dizer, como ele disse, que somos donos, ou que seremos donos, ou que vamos tomá-los", completou.
O princípio de autodeterminação
O princípio de autodeterminação dos povos, citado por Weller, é uma norma consolidada no direito internacional. Ele confere aos povos o direito de decidirem sua situação política e assegurar sua independência, existência e liberdade.
Em 1970, uma declaração da ONU ampliou o escopo deste princípio, expandindo-o também aos palestinos, ainda que sua aplicabilidade seja controversa na doutrina internacional. A resolução da Assembleia Geral daquele ano reconheceu que os palestinos "têm direito à igualdade de direitos e à autodeterminação, de acordo com a Carta das Nações Unidas".
Esta definição embasa a chamada "solução de dois Estados", proposta por diversos países para a resolução do conflito na região. Nela, Israel e os territórios palestinos seriam tomados como Estados, mutuamente reconhecidos.
Na prática, porém, a crise na região se acentua desde a resolução da ONU. Em 1987, a chamada Primeira Intifada reacendeu os embates entre israelenses e palestinos.
Deslocar palestinos da Faixa de Gaza
Trump afirmou que os residentes de Gaza gostariam de sair de lá porque a região se tornou perigosa. Ele sugere que os palestinos migrem para outros locais e permitam a reconstrução do território. Mas, até o momento, não há indícios de que os 2,3 milhões de residentes queiram sair.
Além disso, os países citados pelo americano como receptores de um possível fluxo migratório, Egito e Jordânia, recusaram a solução.
A proposta reacendeu temores de uma nova "Nakba" – termo pelo qual ficou conhecido o êxodo palestino ocorrido após a criação do Estado de Israel, em 1948, e durante e após a guerra entre israelenses e árabes que começou naquele mesmo ano.
"O deslocamento forçado dos palestinos de Gaza constituiria crime contra a humanidade de deportação ou transferência forçada", defende Dill, do Instituto Oxford de Ética, Direito e Conflitos Armados.
A Quarta Convenção de Genebra de 1949, relativa à proteção de civis em tempos de guerra, proíbe a transferência forçada ou a deportação de pessoas protegidas em um território ocupado.
Já o documento de fundação do Tribunal Penal Internacional, o Estatuto de Roma, define um conceito amplo para o deslocamento forçado. "O termo 'à força' não se restringe à força física, mas pode incluir ameaça de força ou coerção, como a causada por medo de violência, coação, detenção, opressão psicológica ou abuso de poder" contra uma pessoa ou grupo, diz o texto.
Dill ainda acredita que uma remoção dos palestinos de Gaza levaria ao cometimento de outros crimes em grande escala.
"A escala de tal empreendimento, o nível de coerção e força necessárias indicam que isso muito provavelmente atingiria o limiar de um ataque sistemático e em grande escala contra uma população civil."
Weller concorda que, sem a vontade explícita dos palestinos, o plano de Trump seria tomado como "deslocamento forçado".
"Realocação é uma palavra gentil para o que seria o deslocamento forçado dos habitantes de Gaza e dos palestinos. No momento, Israel é uma potência ocupante naquele território e, de acordo com as leis de conflito armado, é absolutamente proibido remover permanentemente uma população inteira do território que historicamente habitou", disse o professor de Cambridge, acrescentando que alguns sugerem que isso poderia até mesmo equivaler a uma "limpeza étnica".
Impedir o retorno de moradores deslocados
Trump também defendeu que, depois que os residentes de Gaza saírem, ele não prevê que eles retornem.
Impedir que eles façam isso também seria uma violação dos princípios legais internacionais, segundo os quais as populações deslocadas têm o direito de retornar às terras das quais fugiram, ou foram forçadas a sair.
Até mesmo uma evacuação legal — quando a retirada da população é feita por segurança — por uma potência ocupante "não pode envolver o envio de pessoas para um terceiro país e não pode ser um pretexto para a limpeza étnica ou a remoção da população do território indefinidamente ou de forma permanente", explicou Michael Becker, do Trinity College.
O secretário-geral da ONU, António Guterres, disse à Al Arabiya TV que deslocar a população de Gaza "criaria um alto risco de inviabilizar o Estado palestino para sempre".
Já o chefe de direitos humanos da ONU, Volker Turk, defendeu que a deportação de habitantes de territórios ocupados é estritamente proibida. Para ele, a lei internacional é clara. "O direito à autodeterminação é um princípio fundamental do direito internacional e deve ser protegido por todos os Estados, como a Corte Internacional de Justiça recentemente enfatizou", disse ele. "Qualquer transferência forçada ou deportação de pessoas do território ocupado é estritamente proibida."
gq/cn (Reuters, AFP, DW, ots)