REALEZA Peça exposta no museu recém-aberto em Lisboa, com a suntuosidade representando o poder dos monarcas (Crédito:Patricia de Melo Moreira)

Um “cofre gigante” com 40 metros de comprimento e dez de altura, acesso por apenas duas portas blindadas de cinco toneladas cada uma. Essa foi a maneira encontrada pelos portugueses para desestimular qualquer tentativa cinematográfica de invasão e ataque a peças expostas atrás das vitrines à prova de balas, que guardam a riqueza ostentada pela nobreza durante o período monárquico do país. A “gaiola”, inexpugnável ao menos na teoria, fica no Museu do Tesouro Real de Portugal, construído em três andares e inaugurado dentro do Palácio da Ajuda, em Lisboa. Parte do acervo saiu do Brasil, com destaque para a pepita de ouro com mais de 20 quilos e o diamante bruto garimpado em Minas Gerais com seus 138,5 quilates, pesando 27,7 gramas e que seria apenas o fragmento do original, bem maior. À época, século XVIII, o Brasil não existia como país independente. E se “Brasil” fazia parte do Reino de Portugal, as riquezas eram, de fato, portuguesas. Mas ainda assim, pode-se destacar, devidamente resultado da exploração colonialista.

RIQUEZA Insígnia cravejada de diamantes, rubis, esmeraldas, muitos levados de colônias como o Brasil, no século XVIII (Crédito:Patricia de Melo Moreira)

Por segurança, depois do terremoto de Lisboa em 1755, os reis portugueses da dinastia de Bragança foram morar no Palácio da Ajuda, em região mais segura. Lá ficaram até a proclamada república, em 1910, mas as obras no local não tinham fim. Foi somente depois de dois de séculos (exatos 226 anos), que um aporte de 31 milhões de euros (mais de R$ 160 milhões) permitiu o término da ala oeste do edifício. Agora, a partir de junho, visitantes – devidamente seguidos por câmeras de segurança por todos os lados – podem ver coleções que atestam a suntuosidade cultivada pela Coroa Portuguesa graças a suas várias colônias de além-mar que geraram riquezas para a Europa.

As cerca de mil peças, muitas nunca expostas e algumas valendo mais de um milhão de euros (R$ 5 milhões), estavam espalhadas até serem reunidas no antigo palácio real, repaginado pelo arquiteto João Carlos dos Santos e que se tornou uma “caixa forte” nacional. São jóias, moedas, baixelas, móveis, condecorações, presentes diplomáticos, objetos religiosos e peças conseguidas por colecionadores, divididos em coleções temáticas – dentre elas a denominada Ouro e Diamantes do Brasil.

O professor Antônio Carlos Jucá, diretor do Instituto de História da UFRJ, lembra o contexto do ouro no século XVII: “Pensamos em Brasil e Portugal como se fossem países diferentes, mas o Brasil era parte da monarquia portuguesa. Não existia como país. Assim, o ouro que saía daqui, como pagamento de impostos à Coroa, é utilizado pelos portugueses para atividades comerciais.” Jucá explica que o sistema financeiro europeu era assentado no bimetalismo, tendo ouro e prata como moedas efetivas (além do cobre, reservado às de menor valor) para a compra de artigos da Inglaterra e França, principalmente, mas de toda a Europa. E até mesmo da África, contabilizado o comércio com senhores que vendiam escravizados – e muitos foram levados para as lavras.

O ouro era a base do comércio internacional, o metal mais valioso para grandes pagamentos. Saía do Brasil em barras, para a Casa da Moeda em Lisboa; depois, passou a seguir já cunhado, com a criação da Casa da Moeda do Rio de Janeiro (em 1703) e de Salvador (1721). “Portugal também precisava de prata, que o Brasil não tinha, para fabricar as moedas que faziam parte do bimetalismo. Assim, usou ouro para comprar prata da América espanhola, que era escoada das minas dos Andes, com trabalho indígena, por rota que ia para Buenos Aires.”

Além do ouro, pedras preciosas – principalmente diamantes – também eram levadas para Lisboa, da mesma forma que depois o açúcar, e de lá se espalhavam em pagamentos pela Europa. “Portugal era um entreposto, uma porta giratória”, observa o professor, lembrando que aqui, país escravista, o comércio se baseava na produção comandada por donos de fazendas, senhores de engenho, comerciantes e também mineradores, porque a extração de diamantes era controlada pela Coroa. “Nesse caso, a interferência era direta e o controle mais fácil. Porque o ouro vinha de regiões espalhadas, que hoje seriam em Minas Gerais, Goiás, Mato Grosso do Sul, Bahia, enquanto os diamantes eram encontrados em quantidade assombrosa no norte de Minas Gerais, no chamado Distrito Diamantino. Havia um contrato e os ‘contratadores’ [os exploradores] pagavam um valor por ano para a Coroa, pela exploração de uma área determinada.”

Além das vias oficiais, pepitas de ouro e diamantes também eram contrabandeados para a Europa, “em grande proporção e com muita facilidade”, segundo o professor. Mineiros e comerciantes de ouro fugiam do “quinto”, os 20% de imposto real. De qualquer maneira, a produção brasileira no século XVIII teria ultrapassado 870 mil quilos, de acordo com o livro O Ouro Brasileiro e o Comércio Anglo-Português, de Virgílio Noya Pinto, ou chegado perto de 950 mil, para o geólogo Pandiá Calógeras. Quanto aos diamantes, o país foi o principal produtor do mundo por 150 anos. “O Brasil teve tanto diamante escoado por Portugal que até influiu na queda de preço deles na Europa”, afirma Jucá.

“O rei precisava monstrar poder com magnificência. Quem ajudou a promover a suntuosidade nas Cortes foi Carlos V, no século XVI. Praticamente criou um padrão” Antônio Carlos Jucá, diretor do Instituto de História da UFRJ

NA BÉLGICA O manto Tupinambá, do século XVII, um dos seis remanescentes, está no Museu Real de Arte e História de Bruxelas (Crédito:Divulgação)

Se o ouro arrecadado era para compras em outros países (Portugal pouco produzia), como os industrializados na Inglaterra, e para pagamento de soldados, em parte também era entesourado. “O rei precisava demonstrar seu poder com magnificência”, observa o professor. Quem ajudou a promover essa ideia de suntuosidade nas terras europeias foi Carlos V, no século XVI. Nascido em Flandres, tornou-se o grande poderoso da época das Cortes, surgidas na Idade Moderna, comandando o Sacro Império Romano-Germânico. Carregava toda sua entourage em deslocamentos entre Germânia e Itália e praticamente criou um “padrão”, já assimilado pelas Cortes francesas a partir de Luís XIV, que deu início à construção do Palácio de Versalhes, nos anos 1660. As Cortes portuguesas eram mais pobres e também se atrasaram no tempo. Só conseguiram chegar a essa ostentação quando começaram a arrecadar os impostos das riquezas do Brasil colônia e a cunhar moedas. Daí foi possível construir um palácio maior, vestir roupas suntuosas.

O Brasil colônia tinha 300 mil habitantes em 1700, população multiplicada por 11 vezes depois de um século – apenas de Portugal vieram 300 mil no século XVIII. Três séculos depois, em país já constituído, terras indígenas continuam cobiçadas por garimpeiros e contrabandistas, atrás de dragar ouro ilegalmente na Amazônia, como os 1.800 homens em 300 balsas no rio Madeira, destruindo o meio ambiente à base de violência e sem punições. Eduardo Galeano, o escritor uruguaio de As Veias Abertas da América Latina, retrata no livro – ainda de 1971 – a região submetida à pilhagem e aos mecanismos de espoliação, em sua palavras. E destaca: “Nossa riqueza sempre gerou nossa pobreza”.

Outros tesouros

Não apenas metais e pedras preciosas foram levados à Europa pelos conquistadores, mas também peças de arte plumária, arte santeira, fósseis. Oficialmente ou contrabandeados. Partes de monumentos gregos e peças do antigo Egito, outros exemplos, tiveram o Museu Britânico como destino e seus representantes alegam que nele estão mais bem conservados e guardados do que em seus países de origem – o mesmo argumento do Museu Nacional da Dinamarca. Mas movimentos pela repatriação de tesouros culturais ganham força pelo mundo, incluindo o Brasil.