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JEJUM O bispo, seis quilos mais magro, diante da capela de São Francisco

Na passagem mais cinematográfica do Velho Testamento, Moisés abre as águas do Mar Vermelho para que os hebreus, de retorno do cativeiro, alcancem a Terra Prometida. Sob a sombra de uma palmeira, diante da capela de São Francisco, em Sobradinho, no sertão da Bahia, onde zela por 20 mil almas, um bispo de 61 anos, filho de imigrantes italianos e economista de formação, constrói sua versão do épico bíblico. Dom Luiz Cappio quer parar as águas do rio São Francisco. Há três semanas ele apela para um recurso extremo na sua cruzada contra as obras de transposição do Velho Chico: uma greve de fome que irrita o governo, constrange a Igreja Católica e comove os fiéis da região.

CONVICÇÃO “Quando a razão se extingue, a loucura é o caminho”, diz o bispo

Na sexta-feira 14, com seis quilos a menos por conta dos 17 dias de jejum, dom Luiz Cappio estava mais radical que há dois anos e cinco meses, quando pela primeira vez tentou se martirizar em nome de um suposto salvamento do São Francisco. “Não tenho medo da morte”, disse à ISTOÉ. “Eu não sou o salvador da terra, mas continuo em jejum até que a obra pare e o Exército deixe a beira do rio.” Na filosofia do bispo, “quando a razão se extingue, a loucura é o caminho”.

Essa loucura tem conseguido reunir um pequeno séquito de fiéis que comungam das idéias do bispo. Na última semana, manifestações em apoio ao religioso grevista foram registradas em algumas dioceses. E o temor de que a obra dos sonhos do presidente Lula possa vir a ser atingida pela tragédia pessoal de um bispo levou o governo ao contra-ataque. “Atitudes assim embutem o vício de pensar que a democracia pode se dobrar a um indivíduo”, disse o ministro Geddel Vieira Lima, da Integração Nacional. “Não tenho nada contra dom Cappio. Só não posso aceitar o terrorismo simbólico nem permitir que a chantagem substitua o diálogo”, completa o ministro, cuja Pasta cuida dos estudos técnicos, licitações e verbas para a transposição. “Esse governo é autoritário e ditador”, rebate o bispo.

Na quarta-feira 12, dom Geraldo Majella e dom Dimas Lara Barbosa, presidente e secretário-geral da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), recorreram ao presidente Lula para tentar aliviar a fome de dom Cappio. “Tenho preocupação humanitária com a vida do bispo, mas não vou parar a obra”, disse Lula. Foram duas horas de conversa em que o presidente se manteve irredutível. Irritado com a reincidência do movimento, ele tem dito a interlocutores que não pode ceder em nada. Para Lula, se cada religioso parar de comer para anular projetos, em dez anos não se faz nada neste país.

De fato, o presidente pouco pode fazer enquanto o bispo permanecer irredutível. Há 30 meses, quando o mesmo dom Cappio ficou em greve de fome por 11 dias em Cabrobó (PE) para que o governo aceitasse dialogar sobre o tema, o então ministro Jaques Wagner, hoje governador da Bahia, intermediou o fim do protesto depois de quatro horas de negociação. Agora, em função do radicalismo da posição do bispo, a posição de Jaques Wagner foi outra. “Estamos com médicos, uma UTI do Samu e faremos tudo o que for possível para preservar a integridade de dom Cappio”, diz o governador.

DANILO VERPA/FOLHA IMAGEM

FÉ CEGA
O protesto de dom Cappio tem atraído um pequeno séquito de fiéis que comungam suas idéias

É natural que, depois de promover audiências públicas, ouvir técnicos, contratar estudos de impacto ambiental, fazer licitações e iniciar as obras, o governo siga adiante com seu projeto. No caso de dom Cappio, nem a suspensão liminar das obras, por ordem do Tribunal Regional Federal da 1ª Região, que questiona a avaliação sobre as terras indígenas ao longo da bacia do rio, foi suficiente para interromper a greve de fome. No entendimento da cúpula católica, ele perdeu uma grande oportunidade de sair “no empate”. “Era hora de acabar com essa greve de fome, ele perdeu o timing do protesto”, entende um bispo da CNBB, que pediu anonimato. “Não vou deixar o jejum apenas por uma liminar”, responde Cappio. “Eu quero ver as coisa mais seguras.”

Tamanho sectarismo está constrangendo a cúpula da CNBB. Além de azedar suas relações com o governo, a greve de fome de Cappio coloca a Igreja Católica sob questionamentos que ela preferia não ter de responder. Afinal, se na sua posição contrária ao aborto ela defende com tantos argumentos a defesa da vida, por que não usa a mesma contundência contra uma greve de fome que, em última instância, também atenta contra a vida? “É jejum, não greve de fome. Jejum é uma palavra que Jesus usa no Evangelho. Que ensina que diante dos grandes inimigos e diante da força deles somente o jejum e a oração”, diz dom Cappio. “Então, jejum é uma terminologia evangélica cristã e greve de fome é uma terminologia pagã.”

Restou aos religiosos da CNBB recorrer aos familiares de dom Luiz. “Ele está com o pé atrás”, diz Rita Cappio, irmã do bispo. “Enquanto as tropas não saírem da região, ele não vai parar o jejum.” Aos 77 anos, Rita, a mais velha dos quatro irmãos de dom Luiz, tem autoridade sobre o bispo, mas disse que não vai exercer o seu “poder de mãe” sobre o irmão caçula. “Nós, em primeiro lugar, reconhecemos o trabalho profético dele, que é para o bem da população. Nós respeitamos o seu ideal e não estamos dispostos a demovê-lo da idéia. Embora para nós seja muito duro, estamos de braços dados com ele”, diz ela. Na quinta-feira 13, a CNBB divulgou uma nota na qual convoca todos os cristãos a se unirem “em jejum e oração” pelo bispo dom Cappio.

A decisão de transpor as águas do rio São Francisco vem desde 1821, quando D. João VI ordenou aos técnicos da corte que fosse estudado um projeto para aplacar a sede e a miséria de milhares de nordestinos. “É uma obra vulgar para a engenharia. É zero a razão para não dar certo”, explica o professor Paulo Canedo, coordenador do Laboratório de Hidrografia da Universidade Federal do Rio de Janeiro. “Essa será apenas mais uma dos milhares de transposições do mundo. As cidades de São Paulo e Rio de Janeiro vivem de transposição”, defende ele. De fato, o abastecimento de muitas das capitais brasileiras depende de um volume de água que obrigou as companhias estaduais a construir barragens em outras bacias, transpondo a água até os consumidores.

Projeto dos sonhos de Lula, a obra no São Francisco pretende suprir 12 milhões de habitantes das cidades pequenas, médias e grandes do Nordeste setentrional. É uma região que engloba quatro Estados (Pernambuco, Paraíba, Rio Grande do Norte e Ceará), ao norte do rio, para onde as águas vão rolar depois da transposição. Entre os antagonismos do projeto que colocaram parte da Igreja e o governo em lados opostos está a discussão sobre a forma de utilização dessa água. Enquanto setores da Igreja acreditam que ela tem função humanitária, o governo defende que a transposição deve se dar para geração de renda. Tese defendida também pelo professor Canedo. “É falsa a ilusão de que a água da transposição é para beber. Tem que se dar água para o setor produtivo, para alavancar o progresso, gerar renda e emprego”, explica o professor da UFRJ. “A obra é para dar segurança a quem quer investir no Nordeste.”

Quem quiser se apegar aos argumentos contrários à transposição pode escolher a linha de raciocínio. A ecológica, por exemplo, diz que o São Francisco está degradado e antes de passar um pedaço da vazão para o outro lado deveria receber investimentos na recuperação das suas nascentes e margens. A política diz que a água servirá aos velhos coronéis do interior, que ficarão mais ricos e manterão o povo na miséria. A econômica justifica que é mais barato investir na agricultura dos ribeirinhos do que gastar R$ 4 bilhões para incentivar o plantio em terras mais secas. Apenas dom Luiz Cappio é fatalista a ponto de achar que o São Francisco vai morrer depois que ceder menos de 1,5% da sua vazão às terras de cima. A penitência do bispo, portanto, comove. Mas a loucura do homem que ambiciona ter o poder de domar as águas não se justifica.