Em uma semana, o governo conseguiu elucidar o assassinato da freira americana Dorothy Stang, 73 anos, morta com seis tiros na manhã do sábado 12, em Anapu, Pará. Apenas o suposto mandante do crime, o grileiro de terras Vitalmiro Bastos de Moura, o Bida, continuava foragido, caçado por tropas do Exército e das polícias federal, militar e civil. Amair Feijoli da Cunha, o Tato, intermediário, e os pistoleiros Raifran Sales, o Fogoió, e Clodoaldo Carlos Batista, conhecido como Eduardo, estão presos. Confessaram que receberiam R$ 50 mil pelo “serviço”. A arma do crime foi achada na própria fazenda de Bida, o que evidencia o amadorismo da operação que executou a religiosa.

Sob pressão, o governo anunciou que o assentamento Esperança, sonho dourado de irmã Dorothy, receberia R$ 9 milhões do Ministério do Desenvolvimento Agrário para ser consolidado em curto prazo. Mas o comandante militar da Amazônia, general Cláudio Barbosa de Figueiredo, já antecipava que os recursos liberados pelo governo seriam suficientes para manter os mais de mil soldados na selva de Anapu por apenas um mês.

Tudo caminharia de forma esplêndida para o governo petista, mas não foi bem assim. Na terça-feira 22, um discurso do presidente Luiz Inácio Lula da Silva para duas mil pessoas no assentamento de trabalhadores rurais em Sidrolândia, Mato Grosso do Sul, onde atacou madeireiros e fazendeiros responsabilizando-os pela morte da missionária, acabou por despertar um gigante que estava adormecido nas gavetas do Ministério Público Federal. Trata-se do polêmico inquérito que apura há mais de quatro anos mega-fraudes com incentivos fiscais na Superintendência do Desenvolvimento da Amazônia (Sudam). O escândalo chegou a levar para trás das grades o ex-presidente do Senado, o hoje deputado federal Jader Barbalho (PMDB-PA), e tirou do páreo a pré-candidata à Presidência da República em 2002 Roseana Sarney (PFL-MA), hoje aliados do governo Lula.

Na tentativa de resguardar o Ministério Público Federal das críticas de omissão diante dos crescentes conflitos agrários, o procurador-geral da República,
Cláudio Fontelles, que se esquivou dos golpes desferidos pelas organizações de defesa dos direitos humanos, colocou sobre a mesa do ministro da Justiça, Márcio Thomaz Bastos, um caudaloso relatório que detalha a dificuldade que vem enfrentando para federalizar o assassinato de irmã Dorothy. Motivo: ao remexer no inquérito da Sudam, Fontelles se deparou com políticos que hoje estão na linha de frente no apoio ao governo Lula.

Faroeste – O relatório de Fontelles mostra também a balbúrdia corruptora que está vigorando em órgãos públicos federais com atuação no Pará. No Incra, responsável pela implantação da reforma agrária no País, por exemplo, o então superintendente regional no Estado, Roberto Faro – conhecido como Beto da Fetagri por seus anos de militância nas entidades dos trabalhadores rurais paraenses, invadindo propriedades e ocupando prédios públicos –, acabou preso pela Operação Faroeste, da Polícia Federal, fisgado num grampo aceitando uma propina de R$ 300 mil, oferecida pelos madeireiros para legalizar terras griladas na região oeste do Pará.

Para o Ibama, responsável pela política de combate aos crescentes desmatamentos na Amazônia, sobra a acusação de ter utilizado aviões pertencentes ao empreiteiro Cecílio do Rego Almeida para fazer operações de retirada de madeireiras ilegais na Terra do Meio, entre os vales dos rios Xingu e Tapajós. Nada de anormal na cessão das aeronaves se Almeida não fosse, ele próprio, o responsável pela maior grilagem de terras já confirmada na Amazônia, numa área superior a cinco milhões de hectares, maior do que o Estado de Sergipe, localizada justamente na Terra do Meio.

O elo entre as gigantescas fraudes na Sudam e os assassinatos de líderes sindicais, trabalhadores rurais e da missionária Dorothy Stang tem nome
e endereço definido: Regivaldo Pereira Galvão, o Taradão, que mora em Altamira e, no esquema Sudam, aparece em pelo menos cinco inquéritos como braço direito dos deputados Jader Barbalho e José Priante, ambos do PMDB do Pará. Taradão foi quem teria vendido para o grileiro Bida milhares de hectares de terras pertencentes à União, inclusive a que vinha sendo pleiteada por irmã Dorothy para sediar o assentamento Esperança, integrante do Projeto de Desenvolvimento Sustentável (PDS), menina-dos-olhos da missionária e uma das principais promessas de Lula nos palanques de campanha.

Taradão faz parte da engrenagem de uma azeitada máquina fraudadora, denominada pela Polícia Federal de Máfia da Transamazônica, que por muitos anos sugou milhões dos cofres públicos, burlando a política de incentivos fiscais da Sudam com projetos fraudulentos e que, agora, reunia políticos, fazendeiros e madeireiros no lucrativo mercado da grilagem de terras públicas na Amazônia.

Na acareação feita entre Amair, Raifran e Clodoaldo, este último confessou
que o crime foi encomendado por um “consórcio” de grileiros – integrado por Vitalmiro de Moura – que pagaria R$ 50 mil e mais “algumas cabeças de gado” pelo assassinato da freira. É com base no depoimento de Clodoaldo que a Polícia Federal investiga a possível participação de outros grileiros de terra no financiamento da morte da religiosa.

Caminhos da máfia – Dos 151 projetos financiados pela Sudam no período compreendido entre os
anos de 1998 e 1999 na região da rodovia Transamazônica (BR-230), em cerca de 20 deles a Polícia Federal e o Ministério Público encontraram irregularidades. Dos R$ 547 milhões liberados para esses projetos, cerca de R$ 132 milhões foram parar nos bolsos da quadrilha. Os procuradores da República envolvidos nas ações comprovaram que nada menos que 25% dos recursos do Fundo de Investimento da Amazônia (Finam) foram desviados pelo propinoduto montado na Sudam. “Para que uma fraude de tal magnitude pudesse ser perpetrada, seria, como foi, necessária a montagem de uma organização criminosa com ramificações políticas e altamente profissional”, aponta o procurador-chefe da República no Pará, Ubiratan Cazetta.

A facilidade para ganhar dinheiro pelo propinoduto da Sudam era tão grande que o fazendeiro Laudelino Délio Fernandes Neto teve financiamento para dois projetos, o que é proibido pela legislação do Finam. Délio Fernandes, além de ser diretor-presidente da Agropecuária Vitória Régia, também era procurador, administrador e proprietário de fato da Agropecuária Pedra Roxa. “Como se não bastassem tais provas, Délio Fernandes emitiu cheques no valor de R$ 530 mil destinados a si mesmo, caracterizando novamente a prática de desvio de recursos”, acusa o procurador da República Felício Pontes Junior.

O dinheiro dos incentivos fiscais da Sudam destinados à criação de boi acabou se transformando em apartamentos no Espírito Santo. Délio Fernandes emitiu dois cheques, nos valores de R$ 200 mil e R$ 240 mil para a Littig Engenharia, que, acionada pela Polícia Federal, admitiu ter recebido os cheques como pagamento de dois apartamentos de cobertura no edifício Costa Blanca, em Vila Velha (ES). A farra não parou por aí: Délio Fernandes emitiu um cheque de R$ 201 mil nominal a Isaias Teixeira de Lira, que confessou ao Ministério Público ter recebido o dinheiro em pagamento de cinco mil caixas de cerveja e seis mil caixas de Coca-Cola. Délio Fernandes também comprou uma Toyota Hillux, 4 x 4, zero-quilômetro, modelo 2000, com dinheiro da Sudam.

Touro gigante – As investigações feitas pela Polícia Federal e pelos procuradores da República que atuam nos inquéritos sobre as fraudes com os incentivos fiscais do Finam apontam para a participação de empresários ligados a Jader Barbalho, muitos dos quais dirigentes do PMDB no município de Altamira. Um dos empresários, Danny Gutzeit, em depoimento à Polícia Federal, confessou que pagou R$ 70 mil em propinas para conseguir liberações de verbas da Sudam, recebendo uma nota fiscal – também no valor de R$ 70 mil – do ranário Touro Gigante, pertencente à empresária Márcia Zaluth Centeno, mulher de Jader. A nota discriminava a venda de um milhão de girinos para Gutzeit. Não há ranários, que se saiba, em toda a gigantesca extensão da Transamazônica. As rãs teriam sido adquiridas, segundo o empresário, para enfeitar aquários. Aproveitando-se de dupla cidadania, Gutzeit fugiu para a Suíça, onde está residindo. Livre, leve e solto.