O lulopetismo de hoje é olhado como o comunismo de ontem.

As elites representativas dos mais diversos setores da sociedade brasileira temem atualmente o retorno do PT ao poder, o que se daria com a vitória nas urnas do candidato Fernando Haddad, praticamente da mesma forma que se temeu, no início da década de 1960, a ascensão e a continuidade de João Goulart no comando da Nação após a renúncia de Jânio Quadros. Existe uma diferença no grau de ostensividade com que tais elites procuram exorcizar o fantasma do lulopetismo se a cotejarmos com o medo do comunismo no passado. O risco para o futuro, no entanto, é o mesmo.

Há pouco mais de meio século, figuras notáveis da sociedade civil bateram diretamente às portas dos quartéis seguindo uma perigosa tradição de nossa frágil república — ela própria nascida de um golpe militar. O desejo era derrubar João Goulart e tal ímpeto levou o marechal Humberto de Alencar Castelo Branco a proferir uma das mais herméticas e indicativas frases da história do Brasil: “são as vivandeiras alvoroçadas que vêm aos bivaques bolir com os granadeiros e causar extravagâncias ao poder militar”. Castelo Branco queria dizer, se o traduzirmos para a linguagem de fora da caserna, que empresários, banqueiros, políticos, padres e civis em geral (das classes média e alta) desejavam mesmo era rasgar a Constituição e chamar um golpe militar. Foi também nesse momento que organizou-se a Marcha da Família com Deus pela Liberdade, libelo contra o comunismo, capitaneada pelas mais diversas entidades conservadoras.

Ocorreram quarenta e nove dessas marchas pelo País, levando milhões de brasileiros às ruas — quem estava no rabo das passeatas com certeza seria barrado se tentasse entrar nos clubes frequentados por aqueles que as encabeçavam. As patroas se faziam acompanhar das empregadas domésticas para que elas carregassem as tabuletas a favor dos militares (não pegava bem a dona da “casa grande” sair na foto empunhando coisas). Houve o apoio das Forças Armadas e todos queriam o golpe contra o comunismo, embora Jango chegasse, se tanto, a mentor de uma república sindicalista. O golpe veio, e veio com uma ditadura que perdurou vinte e um anos. Detalhe: o dono frase rebuscada sobre as vivandeiras acabou sendo justamente o primeiro ditador desse período iniciado em 31 de março de 1964.

Hoje, as elites, a classe média e os bem endinheirados não recorrem aos quartéis (até porque os comandos das três Armas são unânimes em garantir a incolumidade das instituições democráticas), mas espalham ao vento e nas esquinas o temor do lulopetistmo. Igualmente, espalham, em decorrência, a sensação de instabilidade e de medo, espalham a passionalidade, espalham os sentimentos de extremismo, exclusão e intolerância. Espalham, erroneamente, que a única saída política e ideológica para evitar a radicalização não fica ao centro, mas sim em outro extremo. Pois bem, encarna o papel de exorcista do lulopetismo o candidato que tem apoio de parte da caserna (entre baixos oficiais) e a simpatia de uma infinidade de seus pares que já estão de pijama (leia-se, na reserva). Ele vem plantando frases, aqui e ali, que deixam explicito o fato de que irá ampliar a representação dos militares no governo federal, caso chegue à Presidência do País. Vamos à sua patente, nome e sobrenome: é capitão e chama-se Jair Bolsonaro.

O candidato não sopra esses ventos para frente, mas vale-se deles para navegar mais à vontade – até criou polêmica sobre a confiabilidade das urnas eletrônicas, num claro recado: se perder o jogo, mela o resultado. Já o seu vice, general Hamilton Mourão, usa e abusa de causar arrepios à democracia. Fiquemos com três de suas explosivas falas: teríamos herdado dos negros a malandragem e dos indígenas, a preguiça; a casa que só tem mãe e avó é berço de gerar desajustados sociais (ele esqueceu que o País tem 11 milhões de lares assim, e sequer um milhão de bandidos); o Brasil carece de uma Constituição escrita tão somente por uma comissão de notáveis – vale lembrar que o conceito de “notável” é algo bastante pessoal e subjetivo.

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Sem estrambelhamento, sem radicalismo e ressalvando que as Forças Armadas seguirão na função constitucional de preservação das instituições democráticas, o comandante do Exército, general Eduardo Villas Bôas, tem vindo a público e fez subir a tensão ao dizer que, diante dos extremismos do momento (que levaram ao abominável atentado contra Bolsonaro) é bem provável que a “legitimidade do próximo governo seja questionada”. A rigor, pela Constituição, os militares (que estão sendo imprescindíveis à manutenção da ordem e da preservação do Estado de Direito desde 1985) não podem falar sobre política. A razão é simples: se o Estado é detentor, com legalidade e legitimidade, do monopólio da força, são eles, os militares, que se encontram instalados no patamar máximo de tal força – até mesmo pelo poder bélico que possuem. É também por isso que, cada vez que um militar fala de política, as suas palavras se tornam agentes multiplicadoras do pensamento que Bolsonaro salva o Brasil do lulopetismo atual, visto com o mesmo medo que se via o comunismo no passado.

Se a sensatez política e o caminho do saneamento da crise econômica fica no centro, como ensina a mais simples teoria sobre a democracia, é importante considerarmos que também o lulopetismo não significa a salvação do Brasil. Ok, comunismo ele não é, mas seu retorno ao Planalto traz consigo o que há de mais execrável em mandatários e em todos aqueles que lidam com a coisa pública: corrupção, patrimonialismo, aparelhamento do Estado, crescente intromissão estatal, anarquia econômica e graves riscos às garantias fundamentais – além das tentativas de indultar Lula e fazer do preso o presidente . Se o fantasma do lulopetismo, encarnado por Fernando Haddad, e o fantasma do militarismo, encarnado por Jair Bolsonaro, assombrassem um ao outro, que bom seria porque, nessa hipótese, as posições de centro triunfariam nas urnas.


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