Memória

Erasmo Carlos era conhecido do grande público como “Tremendão”, nome inspirado na grife de roupas de couro que exibia nos anos 1960 e 1970 nos palcos e programas de TV. Mas o apelido que melhor o definia era mesmo “Gigante Gentil”, e assim o tratavam os amigos mais próximos: um homem enorme, de 1,93m, mas sensível e romântico até o último fio de cabelo.

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O grande pioneiro do rock brasileiro faleceu aos 81 anos, no Rio de Janeiro. Erasmo Carlos, que havia sido hospitalizado em outubro com o quadro de síndrome edemigênica (edema generalizado), teve alta no início de novembro. Na segunda-feira 21, no entanto, teve de ser internado novamente e morreu em 24 horas. Cinco dias antes, chegou a comemorar nas redes sociais o Grammy Latino de Melhor Disco de Rock em Português, pelo álbum O Futuro Pertence… à Jovem Guarda. “É tão importante entender o conceito quanto ouvir a música. Existem diversas formas de amor, e eu preciso de todas. Obrigado aos que contribuíram para mais essa vitória, o Grammy é o reconhecimento do nosso trabalho”, publicou ele. Segundo o produtor do disco, Marcus Preto, Erasmo planejava um novo álbum em parceria com jovens artistas e deixou canções inéditas.

Nos anos 1960, Erasmo Esteves adotou o sobrenome “Carlos” em homenagem a dois personagens essenciais em sua vida: o eterno parceiro Roberto Carlos, com quem compôs mais de 700 canções, e Carlos Imperial, produtor de seu primeiro sucesso, O Terror dos Namorados. Sua carreira passaria então a correr em paralelo a do amigo: enquanto Roberto investia no perfil de ídolo romântico, Erasmo “tinha de manter a fama de mau”, como cantaria mais tarde em um de seus inúmeros hits.

Roberto e Erasmo mantiveram essa dinâmica ao longo de mais de 60 anos. Cresceram juntos no bairro da Tijuca, no Rio de Janeiro, ao lado dos talentosos vizinhos Tim Maia e Jorge Benjor. Há quem diga que a amizade começou graças a Elvis Presley: Roberto queria cantar Hound Dog, de Elvis, no programa Clube do Rock, na TV Tupi. Ficou sabendo que Erasmo tinha a letra em casa e a pediu emprestada. Erasmo voltou a ajudar o amigo em outra ocasião importante: após fazer sucesso no mesmo palco com a canção Festa de Arromba, foi convidado para apresentar um programa na TV Record nos moldes do Fino da Bossa, que contava com a dupla Elis Regina e Jair Rodrigues. Erasmo convidou a amiga Wanderléa e sugeriu o nome de Roberto para que o trio comandasse Jovem Guarda, atração que criou o “iê-iê-iê”.

O novo estilo, influenciado por Beatles e Elvis, desagradava a “Velha Guarda”, integrada por cantores tradicionais como Nelson Gonçalves e Altemar Dutra. O trio também sofria críticas dos tropicalistas, liderados por Caetano Veloso e Gilberto Gil, que consideravam Roberto, Erasmo e Wanderléa alienados politicamente. Os reis do “iê-iê-iê” eram ainda classificados como “americanizados” pelos bossanovistas. Mas os jovens roqueiros não estavam nem aí: só lhes interessavam as filas de jovens que disputavam um lugar na plateia do Teatro Record. Anos mais tarde, em 1977, Roberto homenagearia Erasmo dedicando-lhe uma canção que é conhecida por todas as gerações. Chama-se Amigo e, em um de seus trechos, diz: “Você, meu amigo de fé, meu irmão camarada/Amigo de tantos caminhos e tantas jornadas/ Cabeça de homem, mas o coração de menino/ Aquele que está ao meu lado em qualquer caminhada”. O companheirsmo entre ambos estava eternizado.

Erasmo foi bem sucedido profissionalmente, mas não quis o destino dar-lhe a mesma felicidade na vida pessoal. Norinha, a mãe de seus três filhos, Leo, Gil Eduardo e Carlos Alexandre, suicidou-se em 1995. Em 2014, seu filho caçula, morreu em um acidente de moto. Erasmo, mais uma vez, recorreu a três fatores que jamais abandonou: a religiosidade, a temperança e o resiliência. Superados os traumas, Erasmo voltou a se apaixonar e casou em 2019 com Fernanda Passos, 49 anos mais nova que ele. Com 34 discos lançados e consagrado como um dos maiores nomes da história da música brasileira, Erasmo colecionou sucessos em diversos estilos. Gravou Caetano Veloso e Ary Barroso em Tremendões, de 1970; arriscou toques de samba e jazz no álbum Sonhos e Memórias, de 1972. Chegou até a apostar em ritmos nordestinos em Meus Lados B, de 2015. Mas permanecerá no coração do público como o gigante gentil que soube unir o rock ao romantismo.

Palavras de saudade

“Não sei como dizer tudo o que penso desse meu grande irmão. Meu ídolo por tudo, por sua lealdade, inteligência, bondade” Roberto Carlos, cantor e compositor

“Muito difícil falar de um amigo tão amado. Tantas histórias, alegrias, momentos difíceis e de muita emoção. No dia seguinte a gente fica pensando: ‘Erasmo não está mais entre nós’” Wanderléa, cantora

“Tremendão, amigo de fé, irmão camarada. Ele cantou amores, a força da mulher e a preocupação com o meio ambiente” Luiz inácio Lula da Silva, presidente eleito do Brasil

“Você transcendeu; quem morreu fui eu” Fernanda Passos, viúva de Erasmo

“Agora eu choro só, sem ter você aqui” Maria Bethânia, cantora

“Morremos todos um pouco” Lulu Santos, cantor e compositor

“Erasmo leva seu sorriso e o rock para o céu” Boninho, diretor da Rede Globo