PAPELÃO Jair Bolsonaro repete teses conspiratórias sobre as urnas a embaixadores no Palácio da Alvorada, no dia 18. Coronel Mauro Cesar Cid e almirante Flávio Rocha prepararam slides e convidaram diplomatas (Crédito:Clauber Cleber Caetano)

Não há limites para as ações golpistas para o presidente, como ele já provou desde o início de sua gestão. O último evento contra a democracia no dia 18 foi, além de um repeteco de ataques aos Poderes e ao processo eleitoral, um constrangedor espetáculo de propaganda eleitoral, desvario político e desinformação. Tudo encenado diante de dezenas de representantes do corpo diplomático instalado em Brasília. Foi, na prática, um aviso para o mundo de que o roteiro para o golpe já está preparado, seguindo os passos do ex-presidente Donald Trump nos EUA, como notaram vários diplomatas estrangeiros.

Com uma apresentação em PowerPoint capenga e repleta de erros de inglês, Bolsonaro usou o Palácio da Alvorada como palco para desferir mentiras por 44 minutos e 45 segundos, com transmissão ao vivo pela TV estatal, e às vésperas do início da campanha. Disse que há fraudes nas eleições e que o pleito de 2020 nem deveria ter acontecido. Ao apresentar imagens das suas motociatas (de inspiração fascista) e lembrar o atentado que sofreu em Juiz de Fora, em 2018, mostrou amadorismo e deixou patente que fazia na prática um espetáculo de promoção pessoal, e não uma manifestação como chefe de Estado. Fez o mesmo ao se gabar de que venceu as últimas eleições “gastando menos de 1 milhão de dólares”. Nesse caso, com o agravante de se contradizer, pois atestou que foi legitimado pelo mesmo processo eleitoral eletrônico que agora tenta desacreditar por estar em desvantagem.

Mauro Cesar Cid (Crédito:Divulgação)

Transformados em figuração de uma encenação golpista, os embaixadores demonstraram desconforto e, sobretudo, silêncio. Assistiram à patranha incrédulos, o que se traduziu em uma tímida salva de palmas, puxada pelos funcionários da Presidência, ao fim de um evento que Bolsonaro não sabia como concluir. Embora parte deles já previsse que a reunião teria cunho eleitoral, e não institucional, todos compareceram por dever de ofício. Depois da reunião, procuradas formalmente, a maior parte das Embaixadas respondeu não competir a elas “fazer declarações sobre assuntos de política interna brasileira”. Sob reserva, porém, diplomatas de países europeus e nórdicos, por exemplo, disseram que o presidente não levou fatos novos à mesa e ressaltaram não ter observado qualquer indício concreto de insegurança do sistema eleitoral. O tom político do encontro, acrescentaram, ficou evidente durante os ataques de Bolsonaro a ministros de cortes superiores como Alexandre de Moraes, Edson Fachin e Luís Roberto Barroso, e na constante menção a Lula.

Flávio Rocha (Crédito:Divulgação)

A manifestação definitiva veio um dia depois por meio da Embaixada dos EUA, ao afirmar que “as eleições brasileiras conduzidas e testadas pelo sistema eleitoral e instituições democráticas servem como modelo para as nações do hemisfério e do mundo”. A mensagem foi reforçada mais tarde pelo porta-voz do Departamento de Estado, Ned Price, dizendo que seu país vai acompanhar as eleições com grande interesse e a expectativa é que ocorram de forma “livre, justa e confiável, com todas as instituições agindo segundo seu papel constitucional”. Foi um sinal claro de que os EUA não aceitarão uma rebelião ou uma quartelada, como sonha Bolsonaro, e reconhecerão o resultado das urnas prontamente, neutralizando no campo internacional qualquer tentativa de putsch. Exatamente para neutralizar a reprodução do episódio criminoso dos trumpistas no Capitólio, Joe Biden tem se mostrado firme, inclusive quando se encontrou com Bolsonaro em junho. Mais sutil, o embaixador da Suíça, Pietro Lazzeri, se manifestou nas redes sociais: “No ano do Bicentenário do Brasil, desejamos ao povo brasileiro que as próximas eleições sejam mais uma celebração da democracia e das instituições”.

“É hora de dizer basta à desinformação e também de dizer basta ao populismo autoritário. Há um inaceitável negacionismo eleitoral” Edson Fachin, presidente do TSE

UNIDOS Os ministros Edson Fachin (esq.) e Alexandre de Moraes (dir.) e o presidente do STF, Luiz Fux, endurecem na defesa das urnas (Crédito:Adriano Machado)

A imprensa estrangeira registrou o fiasco. O New York Times disse que o Bolsonaro revelou sua estratégia para as eleições, nas quais as pesquisas apontam uma derrota “de forma esmagadora”. O veículo registrou que diplomatas se mostraram “abalados” pelas alegações sobre as falhas no processo eleitoral, assim como pela pregação da participação dos militares no processo. A impressão, de acordo com diplomatas ouvidos pelo jornal americano, é de que o presidente está preparando as bases para contestar os resultados se ele perder. É a estratégia usada por Trump nos EUA, lembrou o periódico. A Bloomberg, principal serviço de notícias financeiras do mundo, classificou os questionamentos de Bolsonaro como “velhas e refutadas teorias da conspiração”.

Para desmontar a narrativa que Bolsonaro preparou para sustentar seu golpe ao mundo, o TSE agiu rapidamente. Mandou logo após a apresentação 20 respostas aos diplomatas, refutando todos os pontos das falsas acusações. Outra estratégia da Corte também se mostrou bem-sucedida: após extensas negociações, as redes sociais estão colaborando para evitar que a desinformação se espalhe. No mesmo dia em que Bolsonaro tentou divulgar suas mentiras, o Youtube tirou do ar um dos seus principais vídeos com fake news.

Apesar de o discurso encenado em Brasília ter sido interpretado como uma farsa desesperada de um governante que se inviabilizou eleitoralmente, seu conteúdo destrutivo e perigoso para a democracia foi visto, como devia ser, com extrema gravidade. Bolsonaro conseguiu unir as instituições na defesa da democracia. O ministro Edson Fachin, presidente do TSE, soou o alarme. “É hora de dizer basta à desinformação e hora também de dizer basta ao populismo autoritário”, declarou no mesmo dia. O presidente do STF, Luiz Fux, reiterou sua confiança no processo eleitoral, repudiando os ataques às urnas. Foi mais do que um gesto de apoio. Os ministros do STF desejam demonstrar unidade e firmeza na condução das eleições para evitar que o presidente consiga subverter o pleito. Mesmo o STJ, que não costuma se manifestar, engrossou o coro, assim como a Associação dos Juízes Federais (Ajufe).

Instituições reagem

A reação no Ministério Público foi igualmente forte. Um grupo de 33 subprocuradores-gerais da República divulgou que o chefe do Executivo tem o dever de “respeitar lealmente os Poderes da República” e não tem o direito de “desacreditar ou de atacar impunemente as instituições”. Além disso, 43 procuradores de todo o País encaminharam ao procurador-geral da República, Augusto Aras, uma “notícia de ilícito eleitoral” contra o presidente, apontando que ele procura desestabilizar e desacreditar o processo e as instituições eleitorais praticando ilícitos eleitorais por meio de abuso de poder, com uso de propaganda e desinformação. A Associação Nacional dos Procuradores de República e a Associação Nacional dos Membros do Ministério Público também criticaram os ataques, reforçando o isolamento de Aras. “Os antecedentes não indicam que ele tomará as rédeas e avançará sobre o Planalto. Mas é o que deveria fazer. O MPF tem como função constitucional a defesa da ordem jurídica e do regime democrático”, diz um integrante do Conselho Superior do MPF, sob reserva. Contrapondo-se às ilações do presidente sobre as urnas, três associações de delegados e peritos da PF também se manifestaram para afirmar que nunca foram apresentadas evidências de fraude. Até a associação de servidores da Abin, a Intelis, saiu em defesa do sistema eleitoral, afirmando que “não há qualquer registro de fraude desde a implantação do atual sistema”.

No Congresso, a resposta coube ao presidente do Senado, Rodrigo Pacheco. Ele afirmou que o Legislativo tem a “obrigação” de defender o resultado do pleito e que questões superadas “não admitem mais discussão”. Parlamentares da oposição acionaram o STF para que Bolsonaro seja investigado. Avaliam que o presidente pode ter cometido crime de “abolição violenta do Estado Democrático de Direito”, que prevê pena de quatro a oito anos de prisão. Também pedem que Bolsonaro se enquadre no crime de incitação das Forças Armadas contra o TSE. Solicitam que a representação seja enviada ao Tribunal e ao Ministério Público Eleitoral para a apuração da prática de “crime eleitoral, propaganda eleitoral antecipada e abuso do poder político e econômico”. E também pedem a abertura de inquérito para apurar improbidade administrativa.

ADVERTÊNCIA E TRUMPISMO Em junho, o presidente Joe Biden (acima) pressionou Bolsonaro pelo respeito ao processo eleitoral em encontro na Califórnia. No final do mês, Bolsonaro deu entrevista no Planalto ao apresentador Tucker Carlson, da TV Fox News, aliado de Trump e porta-voz da direita radical americana (Crédito:Evan Vucci)

Militares no apoio

Apesar da robusta resposta institucional, Bolsonaro ainda conta com os militares. Para impressionar os embaixadores, os comandantes da Aeronáutica, Marinha e Exército foram convidados à “palestra”, mas declinaram. O desenvolvimento do script ficou nas mãos de militares palacianos. Citados em inquéritos como o dos atos antidemocráticos, os ministros do Gabinete de Segurança Institucional, Augusto Heleno, e da Secretaria-Geral da Presidência, Luiz Eduardo Ramos, debateram com Bolsonaro o que deveria ser falado. Participaram desta etapa, ainda, o ministro da Defesa, Paulo Sérgio Nogueira, que tem atuado como porta-voz do golpe, e Walter Souza Braga Netto, o qual será confirmado como vice de Bolsonaro em convenção do PL agendada para o próximo domingo.

Um dos ajudantes de ordens da Presidência, o coronel Mauro Cesar Barbosa Cid, que chegou a ser indiciado pela divulgação de um inquérito sigiloso da PF sobre um ataque hacker ao sistema eleitoral, organizou os slides. Ao secretário especial de Assuntos Estratégicos, almirante Flávio Rocha, coube a distribuição de convites. O advogado-geral da União, Bruno Bianco, único “civil” envolvido, fez orientações gerais para buscar evitar que Bolsonaro fosse enquadrado pela legislação eleitoral.

“As eleições brasileiras conduzidas pelo sistema eleitoral e instituições democráticas servem como modelo para o mundo” Embaixada dos EUA

Divulgação

Papel constrangedor no episódio coube ao Itamaraty, agora também enredado na trama golpista. Carlos França, ministro das Relações Exteriores e, portanto, formalmente responsável pela organização de eventos diplomáticos, ficou escanteado. Apático, o chanceler acompanhou o vexame da plateia, em silêncio. Aliados buscam eximi-lo de responsabilidade. A desculpa é que o Itamaraty, que reforçou os convites ao corpo diplomático, deve se submeter ao Executivo. Mas verdade seja dita: se fosse comprometido com a estabilidade democrática, França teria se recusado a embarcar na aventura tresloucada do presidente e deixado o cargo. Nunca o Ministério das Relações Exteriores tinha sido usado explicitamente para atacar as instituições. Aliás, como lembrou o embaixador Rubens Barbosa, nunca um presidente tinha usado seu braço diplomático para atacar o próprio País.

O saldo da avacalhação, dizem servidores, é a redução do prestígio internacional do Itamaraty. “As eleições são um assunto interno, doméstico. E o problema maior é estar no meio da difusão de informações infundadas para outros governos”, pontuou um diplomata, sob a condição de anonimato. Constrangimento parecido, lembram, ocorreu somente em março de 2016, quando Dilma Rousseff chamou todos os cerca de 150 embaixadores estrangeiros para um “Encontro pela Legalidade da Democracia”, em que juristas trataram o processo de impeachment como um golpe. Atestando o descontentamento, a Associação dos Diplomatas Brasileiros (ADB) divulgou uma nota dizendo que a Justiça Eleitoral é plenamente confiável. O Fórum Nacional Permanente de Carreiras Típicas do Estado (Fonacate), que representa 200 mil integrantes da elite do funcionalismo público, também repudiou “discursos que buscam desqualificar a lisura do processo eleitoral”.

O novo ataque às urnas frustrou o comitê de campanha de Bolsonaro e o Centrão, que sabem que esse discurso tira votos e reforça a imagem de que o presidente sabe que a eleição já está perdida. “Desacreditar o sistema eleitoral, colocar em dúvida a seriedade da urna eletrônica, atacar o livre exercício do poder judiciário eleitoral perante representantes estrangeiros. O conjunto de condutas deixa clara a prática do crime”, analisa a professora de direito penal da USP Helena Regina Lobo da Costa, frisando que, neste caso, a abertura do processo caberia ao presidente da Câmara, Arthur Lira. Para ela, Bolsonaro incorreu, ainda, no ilícito eleitoral de abuso de poder político. Além de vários crimes de responsabilidade, listados no artigo 85 da Constituição, o evento de Bolsonaro usando um prédio público, convocado por servidores de Estado e com uso de meios públicos configura crime eleitoral.

Divulgação

Mesmo assim, o presidente não pretende recuar um milímetro. Comete crimes em série porque se sente blindado pela omissão do procurador-geral da República e de Lira, que guarda mais de 130 pedidos de impeachment em sua gaveta. Prova disso é que os dois permaneceram em silêncio, enquanto dezenas de autoridades condenaram a investida antidemocrática. Tão importante quanto a reação das instituições é um “basta” a Bolsonaro emanado da própria sociedade. Os meios constitucionais de impedir que cometa crimes em série não estão funcionando. Os Poderes precisam reagir e os líderes políticos têm a obrigação moral de se contrapor. É necessário garantir que os candidatos eleitos, inclusive o próximo presidente, sejam empossados sem distúrbios. Já os perdedores devem ter como única alternativa recorrer à Justiça – ou se defender nela dos crimes que cometeram.