Cerca de 650 áreas municipais da cidade de São Paulo estão cedidas a terceiros por permissão de uso ou concessão administrativa, segundo relatório da Prefeitura publicado em junho. Como no recente caso do Círculo Militar, condenado em uma ação que ainda cabe recurso, parte das cessões de terrenos municipais é contestada na Justiça ou está com a validade expirada.

Embora a maioria das permissões seja de áreas cedidas para outras esferas públicas, museus, espaços culturais, centros comunitários, instituições de ensino e guaritas de vigilância, uma parte é utilizada por clubes de bairros majoritariamente de classes média e alta, o que foi questionado em diferentes momentos das últimas décadas. Recentemente, promotorias do Ministério Público de São Paulo (MPSP) têm feito reuniões sobre o tema, antes discutido caso a caso. São Paulo tem alguns exemplos recentes de entidades que precisaram devolver áreas ou passar a pagar retribuição mensal.

O objetivo é debater se o Município deveria repensar a aplicação desse tipo de política pública, não somente pelas contrapartidas serem consideradas insuficientes, mas também pelas possibilidades de aproveitamento público dos terrenos. “Clubes e associados são beneficiados por uma situação em que a sociedade acaba pagando por esse luxo. A mensalidade, no fim das contas, está sendo subsidiada pela cidade. Isso, em princípio, não faz mais sentido hoje”, argumenta o promotor Marcus Vinicius Monteiro dos Santos, da Promotoria de Habitação e Urbanismo.

O promotor comenta, ainda, que a disponibilidade e o custo do terreno figuram entre as principais dificuldades para a implantação de espaços públicos, o que estaria facilitado quando a área já pertence à Municipalidade. “Será que não poderia ter equipamentos públicos nessas áreas, como creches, escolas, habitação?”

Parte das ações movidas pelo MPSP nos últimos anos teve decisões favoráveis, como no caso do Círculo Militar. O clube foi condenado em junho a devolver a área pública de 31 mil metros quadrados que ocupa desde 1957 em um terreno que originalmente integrava o Parque do Ibirapuera, na zona sul paulistana. Na decisão dos embargos declatórios, na quinta-feira, 18, o juiz Kenichi Koyama, da 15ª Vara da Fazenda Pública, aceitou mudar o prazo de saída para 18 meses, em vez de 90 dias, para não prejudicar “eventual calendário de aulas, de atletas, e sobretudo para que haja tempo suficiente de inclusão de proposta em Lei Orçamentária”. O clube havia pedido três anos.

O magistrado criticou a postura da gestão Ricardo Nunes (MDB), em resistir ao encerramento da permissão de uso. O prefeito se reuniu na segunda-feira, 15, com o presidente do Círculo Militar, general de Divisão Eduardo Diniz, para tratar do tema. Em nota, a gestão apontou que foram abordadas “diversas alternativas, que prosseguirão em estudos junto com as tratativas para alcançar uma solução adequada que atenda ao interesse público”.

A Justiça também determinou o pagamento retroativo de uma indenização de R$ 1 milhão para cada mês de uso “irregular” desde maio de 2014. Um título de associado no clube custa, à vista, de R$ 10 mil (individual) a R$ 20 mil (familiar). Em nota ao Estadão, o escritório Escudero e Ziebarth Advogados, que representa o Círculo Militar, afirmou que entrará com um recurso de apelação ao Tribunal de Justiça, pois considera o termo de permissão de uso “legítimo” e que o espaço tem “destinação plenamente adequada ao interesse público”.

Decisão judicial semelhante chegou a ocorrer há quase cinco anos em relação ao Clube Esperia, em Santana, na zona norte paulistana. Em 2017, a Justiça considerou procedente uma ação movida pelo MPSP e determinou a anulação da concessão de uso em até 90 dias. A decisão foi revertida em segunda instância, em processo ainda em curso.

Em 2019, a Prefeitura promulgou uma lei proposta por vereadores para prorrogar o uso da área por mais 20 anos. Procurado, o clube afirmou que “atendeu estritamente a todos os requisitos legais para obtenção da concessão”.

Mais de 141 casos do tipo foram investigados há 21 anos na CPI de Áreas Públicas, incluindo áreas também ocupadas por empresas, com poucas mudanças nos termos de permissão subsequentes. Ex-vereador que integrou a comissão e professor de Urbanismo da USP, Nabil Bonduki avalia se tratar de um “problema histórico” da cidade. “É um misto de incompetência, negociação política e um pouco de falta de interesse em implementar uma política pública. Quase todos os prefeitos, quase todas as gestões fizeram isso”, lamenta.

Ele comenta que o tema acaba sendo visto como delicado pelo poder público por envolver torcedores de futebol e clubes com associados influentes. “A Prefeitura e os vereadores, de uma maneira geral, acabam sendo muito tolerantes com os concessionários, não querem ficar antipáticos diante de clubes como São Paulo, Corinthians e Palmeiras ou de clubes influentes, que acabam pressionando ou fazendo intermediação. E isso tudo dificulta que se pense nesses espaços como parte de um patrimônio público. Fica uma situação ambígua, confusa.”

No caso do Círculo Militar e do Ipê Clube, por exemplo, o urbanista considera que a Prefeitura poderia estudar a possibilidade de venda dos terrenos, por estarem em locais valorizados e com menor demanda de equipamentos públicos. Os recursos da transição poderiam ser destinados ao Fundo Municipal de Parques, previsto no Plano Diretor, para a criação de novos espaços verdes na cidade.

O citado Ipê Clube, também no entorno do Parque do Ibirapuera, na Vila Clementino, é um dos casos mais emblemáticos na cidade. Com uma das permissões de uso expiradas há quase dois anos, a instituição procurou a Justiça para garantir a permanência no local. “Pretendendo obrigar o Município a analisar os pedidos de renovação da concessão, formulados desde 2006. Essas medidas judiciais estão em andamento”, afirmou o advogado do clube, Maurício Zockun.

Em 2021, a entidade criou uma comissão e contratou novos advogados especificamente para a situação, para renovar a cessão ou adquirir a área de 21,8 mil metros quadrados cuja permissão de uso foi lavrada em 1980. O clube ainda tem outra de 1974, cedida por prazo indeterminado, de 9,1 mil metros quadrados.

A situação chegou a ser contestada em uma ação civil pública, na qual a Justiça não acolheu o pedido do MPSP de encerrar a concessão, em 2012, mas determinou o cumprimento integral das contrapartidas, como serviços de educação e recreação gratuitos para crianças na vizinhança. Segundo o advogado do clube, “as contrapartidas sociais vêm sendo paulatina e gradualmente aprimoradas em constante diálogo com as secretarias municipais”.

Paula Freire Santoro, professora de Urbanismo na USP, explica que parte dessas permissões está em áreas alagadiças ou de várzea do Rio Tietê, que tiveram uma divisão de terrenos complexa, com lotes grandes, sem vias internas ou sem planejamento adequado. Hoje estão em bairros mais valorizados. “Essa decisão importante (do Círculo Militar) tenta alterar a postura da Prefeitura na gestão dessas áreas pública, que não podem ficar num empréstimo gratuito infinitamente.”

A urbanista avalia que a gestão municipal precisa ter um planejamento para os imóveis públicos, com um olhar de oportunidade de transformação urbana em áreas já elitizadas da cidade. “Se olhar a terra pública apenas como um ativo financeiro, rentável, reforça que os preços sigam altos e a inclusão social em baixa.”

Também há casos que envolvem os maiores clubes de futebol da cidade, como o Corinthians, o Palmeiras e o São Paulo, além da Portuguesa e do Juventus, da Mooca. Parte é contestada na Justiça há anos, enquanto outra também está com a permissão expirada ou por expirar. Entre os terrenos, estão dois centros de treinamento na Avenida Marquês de São Vicente que a lei da Operação Água Branca (de 2013) prevê a transformação em parque “quando devolvidas à posse do Município”.

Em nota, a Prefeitura afirmou que a Procuradoria-Geral do Município acompanha as ações em tramitação na Justiça e que a renovação da concessão do Ipê Clube “está sendo tratada”. Também destacou que, por conta de um decreto de 2007, foram abertos “processos de revisão das contrapartidas para as permissões e concessões em vigor”.

Em 10 anos, parte dos clubes passou a pagar valor mensal e até devolveu espaços

Algumas das permissões e concessões hoje em vigor chegaram a ser alvo de projetos de retomada pelo Município, especialmente nas gestões de José Serra (PSDB) e Fernando Haddad (PT), além de contestados pelo Ministério Público e no relatório final da CPI de Áreas Públicas, emitido por vereadores em 2001. Em parte delas, a cessão foi modificada ou até encerrada.

Um desses casos é do Clube Alto de Pinheiros, na zona oeste. Contestada em ação civil pública desde 2001, a permissão anterior da entidade foi encerrada e substituída por outra, com contrapartida financeira, em 2017.

Hoje, o clube precisa pagar uma retribuição mensal de R$ 41,9 mil, relativa a uma área de 2,7 mil metros quadrados utilizada como campo de futebol society e churrasqueira. Procurado pelo Estadão, ressaltou que faz o pagamento regularmente do aluguel, que é reajustado anualmente, assim como do IPTU, de R$ 160,8 mil, parcelado em 10 prestações.

Outro exemplo é do Clube dos Oficiais da Polícia Militar do Estado de São Paulo (COPM), que teve de devolver uma área cedida em 1995 no Bom Retiro, na região central, após decisão judicial em ação civil pública movida pelo MPSP. A área, de 4,4 mil metros quadrados, foi destinada à Guarda Civil Metropolitana, em 2016.

Situação semelhante também envolveu o Clube de Regatas Tietê, cuja permissão (originária de 1949) foi finalizada em 2012 em meio ao endividamento da entidade, que deixou de funcionar. A área (de 49,7 mil metros quadrados) foi transformada no Centro Esportivo e de Lazer Tietê após reformas e reaberta dois anos depois com atividades públicas.

Procurador de Justiça no MPSP, Valter Foletto Santin avalia que ser “conveniente que a Municipalidade faça uma ampla reanálise de todas as cessões de terrenos públicos”, para eventuais correções de irregularidades, ilicitudes e inadequações do uso de espaços, inclusive com a possibilidade de reajustes.

Para o procurador, em princípio, deveria-se aguardar o prazo das permissões mais antigas “com obrigação de verificação do cumprimento das contrapartidas e, se inadequadas, proceder à sua revisão, com análise caso a caso”. “Se terminado o prazo de permissão, o terreno e benfeitorias deveriam retornar imediatamente ao patrimônio público, e o município deveria estudar a melhor alternativa ao seu uso, sem necessariamente permitir a continuidade do uso por entidade associativa ocupante do imóvel.”

Professora do Insper e pesquisadora em Direito Urbanístico do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap), Bianca Tavolari analisa que a questão não é a permissão de uso em si, mas a aplicação quando não há um interesse público. “O problema não é das concessões, mas do modelo utilizado, que está pegando terrenos e patrimônio concedido sem contrapartida ou com contrapartidas muito pequenas.”

Entre os elementos a serem avaliados, estão o acesso restrito a parte da população, o valor do terreno e a renúncia fiscal. Ela cita como exemplo o Círculo Militar, em que o MPSP identificou que a não cobrança de IPTU (orçado em R$ 1,3 milhão) e de aluguel (estimado em R$ 878 mil ao mês) resulta em um prejuízo anual aos cofres públicos de R$ 11,9 milhões.

Outro ponto que questiona é se os clubes têm sido transparentes com os novos associados sobre as permissões e concessões de uso. “Quem se associou, provavelmente não sabia, mas a administração sabia, sabia que tem prazo de validade, que expira. As renovações anteriores não dão garantia de nada. As regras são muito claras”, afirma.