Para o ministro, estabilidade dos funcionários da Saúde contraria interesses da população

O ministro da Saúde, José Gomes Temporão, parece ter um gosto todo especial pela polêmica. Logo depois que tomou posse, ele defendeu a realização de um plebiscito que discutisse a legalização do aborto. Provocou como reação uma passeata na porta do seu Ministério. Mais recentemente, criticou o sambista Zeca Pagodinho, um dos artistas preferidos do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, por fazer propaganda de cerveja. Agora, ele resolveu comprar briga com os médicos e servidores do seu próprio Ministério: Temporão pretende alterar a forma de administração dos hospitais públicos. Sua idéia é criar uma fundação que gerisse esses hospitais com regras do setor privado. Nessa nova lógica, os médicos e demais funcionários perderiam a estabilidade que o serviço público garante. Passariam a ser contratados pela CLT e poderiam ser demitidos a qualquer momento. Para Temporão, é a segurança da estabilidade, associada com a burocracia da administração pública, que torna ineficientes o atendimento e o funcionamento de muitos hospitais do Sistema Único de Saúde. Nessa entrevista a ISTOÉ, o médico sanitarista de 55 anos, nascido em Monção, no norte de Portugal, com 27 anos de dedicação ao setor de saúde, aborda ainda outras questões polêmicas. Volta a brigar com as fábricas de bebidas ao pregar uma intervenção governamental no conteúdo das suas propagandas. Cutuca a indústria farmacêutica ao defender a quebra da patente do medicamento contra a Aids Efavirenz e a falta de investimentos desses laboratórios multinacionais no País. E provoca o próprio governo ao cobrar mais verbas e critica a falta de definição da saúde como uma política de Estado.

ISTOÉ – O presidente Lula disse há algum tempo que a saúde brasileira estava perto da perfeição. O sr. concorda com esse diagnóstico?
JOSÉ GOMES TEMPORÃO

Evidentemente, eu não vou discordar do presidente. Hoje, nós temos um sistema de saúde cuja amplitude não tem paralelo em lugar nenhum do mundo. E o acesso é muito fácil. Mas é claro que há problemas. Especialmente nas grandes regiões metropolitanas, onde a questão da violência, da marginalização, da pobreza e da falta de infra-estrutura se soma à ausência de uma estratégia do Estado de oferecer saúde. Um bom exemplo são os morros do Rio de Janeiro. Nós estamos num conflito bélico, numa guerra declarada. Como é que eu garanto que aquela população tenha acesso aos serviços de saúde? Existem fragilidades no primeiro atendimento de urgência e emergência. Existem fragilidades na questão da atenção básica, da saúde da família. Existem muitas localidades com estrutura precária de equipamentos, de prédios. Tudo isso existe.

Essa heterogeneidade é que dá singularidade ao sistema de saúde brasileiro.

ISTOÉ – Como reduzir essas disparidades?
JOSÉ GOMES TEMPORÃO

Estamos propondo a criação de uma fundação estatal, de direito privado, para substituir o modelo de administração direta dos hospitais. O que fundamentalmente vai mudar com a criação dessa fundação é que os servidores passarão a ser contratados pela CLT, sem estabilidade, com princípios de gerência moderna.

ISTOÉ – O sr. acha, então, que servidor na área de saúde não deve ter estabilidade como os demais funcionários públicos?
JOSÉ GOMES TEMPORÃO

Em serviços como educação, na saúde e assistência social, eu não vejo como se possa justificar a estabilidade. Se você defende uma carreira estável para o servidor de saúde, fica amarrado a um outro conjunto de regras e normas que regem o serviço público. E eles não são compatíveis com o atendimento à população. Eu preciso ter um atendimento eficiente e ágil. Que eu não tenho na administração direta, na qual a estabilidade se dá. Se hoje um equipamento quebra, pode ter certeza que a burocracia o fará ficar quebrado dois meses. Se você tem uma instituição com uma estrutura mais ágil, pode resolver isso num prazo mais curto. Outro exemplo: se eu tenho um diretor de hospital que conseguiu economizar 10% do seu orçamento melhorando a gestão, hoje ele tem de devolver esse dinheiro ao Tesouro. Se eu tivesse outro modelo, eu poderia premiar os funcionários do hospital com um pagamento adicional pelo bom desempenho. Ou poderia reinvestir essa sobra na própria instituição.

ISTOÉ – Há uma discussão no governo, levantada pelo próprio presidente, com relação às greves no serviço público, especialmente nos setores essenciais. O sr. acha que é preciso mais rigor para evitar greves na saúde?
JOSÉ GOMES TEMPORÃO

Fazer greve na saúde é punir de forma muito violenta as pessoas que estão sofrendo. É claro que os trabalhadores têm direito à organização e à defesa dos seus direitos.

Mas eu sou contra greve na saúde. A sociedade tem que ter salvaguardas com relação a isso. Mas acho que o setor médico já entendeu que é um pouco difícil convencer a alguém que está com dor e não será atendido que a sua reivindicação é mais justa.

ISTOÉ – O Brasil gasta pouco com saúde?
JOSÉ GOMES TEMPORÃO

Gasta pouco. Enquanto a Inglaterra utiliza 70% dos seus gastos totais com saúde, no Brasil esse porcentual é de 45%. Há um subfinanciamento que eu tenho que enfrentar.

ISTOÉ – O sr., então, fica obrigado a pressionar os donos da chave do Orçamento.
JOSÉ GOMES TEMPORÃO

Sem dúvida, há uma dimensão econômica que tem de ser considerada. A saúde no Brasil nunca foi tratada como uma política de Estado. E ela tem uma importância econômica que precisa ser considerada, independentemente do gasto. O setor de saúde movimenta cerca de 10% do Produto Interno Bruto, gera 7,5 milhões de empregos diretos e indiretos. Somos o décimo mercado de medicamentos do mundo. A participação do Estado nesse setor é muito grande. São 70 mil estabelecimentos. É uma área que inova muito em tecnologia. Que tem muito emprego qualificado. E nunca investimos muito nisso. Quando você olha a balança comercial setorial, o somatório do que a gente exporta com relação ao que a gente importa na indústria médica, no final dos anos 80 era negativa em US$ 600 milhões. Hoje, chega a US$ 6 bilhões/ano. Ou seja: a nossa dependência do Exterior está aumentando, o que aumenta a nossa vulnerabilidade. Nós precisamos criar uma política para alterar isso. Por exemplo: um medicamento que tenha grande impacto do ponto de vista de saúde pública e nos gastos do Ministério. Se houver condições de infra-estrutura, tecnológicas e de conhecimento para produzir no Brasil, para que importar?

ISTOÉ – É nessa lógica que se tomou a decisão de quebrar a patente do Efavirenz, remédio do coquetel de Aids? Que conseqüências essa decisão já trouxe?
JOSÉ GOMES TEMPORÃO

A conseqüência prática e objetiva é que com essa medida nós garantimos a manutenção do programa. Nós vamos economizar US$ 30 milhões por ano. Era uma questão de se exigir um tratamento equânime. Não é possível que o preço do medicamento aqui seja mais alto do que num país da Ásia. Na semana que vem, vamos assinar um acordo com outro laboratório que voluntariamente está reduzindo o preço de outro medicamento do coquetel de Aids.

Disseram que estávamos dando um tiro no pé, comprando uma briga com os laboratórios. Que a indústria ia se afastar de nós, parar de investir no País. Não está se vendo nada disso. Há um laboratório em negociação para instalar no Brasil uma fábrica de vacinas hipermoderna. No mês passado, inauguramos uma fábrica de insulina em Minas e outra de genéricos em Campinas. E, quando dizem que a indústria multinacional vai deixar de fazer pesquisa no Brasil, aí a história é diferente: ela nunca fez pesquisa no Brasil.

ISTOÉ – Cerca de 30% dos doentes que usam medicamentos de alto custo só conseguem recebê-los gratuitamente a partir de decisões judiciais. A lista de remédios está desatualizada, é de 2002. Como resolver isso?
JOSÉ GOMES TEMPORÃO

Quando a indústria farmacêutica lança um novo medicamento no Estado, ela trabalhou com três critérios: os investimentos com a inovação, a proteção da sua patente e os gastos com comercialização e marketing. Esses últimos são gigantescos. Estima- se que correspondam a 30% do que você paga no preço do remédio na farmácia. É evidente que a intenção da indústria é vender mais produtos. Nós precisamos avaliar a diferença que pode haver entre o direito público e o privado. Imagine, por exemplo, um medicamento para pacientes terminais de um determinado tipo de câncer. Você tem um produto que usa e que tem um determinado resultado. Aí, a indústria lança um novo produto que dá ao paciente uma sobrevida média de mais dois meses. Mas o custo se multiplica por dez.

Se você olha pela perspectiva do cidadão que está com câncer, é claro que ele quer tomar o novo medicamento e ganhar mais dois meses de vida. Mas, do ponto de vista da política pública, é impossível fazer isso. Se a equação fosse outra, se o medicamento, digamos, curasse a doença, nós estaríamos diante de uma nova discussão. É importante chamar a atenção para o fato de que as pressões que existem por trás da incorporação de um novo produto são várias. Agora, nós precisamos, de fato, fugir dessa situação dramática das decisões judiciais que dão liminares para que se compre, às vezes, remédios que nem têm registro no Brasil ou cuja eficácia ainda não está comprovada. Daí a necessidade de uma legislação que seja mais clara com relação a isso.

ISTOÉ – O que o governo pode fazer para coibir os abusos dos planos de saúde?
JOSÉ GOMES TEMPORÃO

A legislação hoje garante bem os planos novos. Nesses, as empresas já estão obrigadas a cobrir todos os casos. Mas há coisas que precisam ser reformuladas. Uma delas é a garantia da portabilidade: você poder levar para um novo plano as condições que o plano anterior lhe assegurava. Se hoje estou num plano e avalio que ele não me dá um serviço de qualidade com relação ao que pago, se eu troco, tenho que cumprir um novo período de carência. É uma questão polêmica, mas nós estamos estudando mudar isso. Isso aumentaria a competição e melhoraria a qualidade.

ISTOÉ – O sr. se arrepende de ter proposto um plebiscito sobre a legalização do aborto?
JOSÉ GOMES TEMPORÃO

Ao contrário do que muitos pensam, não foi uma estratégia pensada propor isso. Eu sempre digo que não fui eu quem escolheu o tema, foi o tema que me escolheu. Isso era uma questão tão latente na sociedade que a discussão aflorou. Acho que o saldo foi positivo.

O Congresso Nacional terá que se posicionar sobre mudar a nossa legislação sobre o tema, que é da década de 40. O que se percebe em todos os países que mudaram é que cai o número de gestações indesejadas.

ISTOÉ – Como está a discussão sobre a restrição aos comerciais de bebidas alcoólicas?
JOSÉ GOMES TEMPORÃO

Há uma proposta de regulação que altera o horário e muda o conceito de bebida alcoólica. Hoje, é proibida a propaganda de bebidas que têm mais de 13 graus de teor alcoólico. Agora, será meio grau. Vai incluir cervejas e essas bebidas que misturam vodca com refrigerante. Não dá para deixar para a indústria a autoregulamentação. A prova de que não funciona são os próprios anúncios que são veiculados. Hoje, não há uma informação clara de que aquele produto é potencialmente nocivo.

A propaganda passa uma mensagem subliminar de que a bebida leva a uma situação idílica, altamente prazerosa, de gente bonita e saudável. E só no final rapidamente recomenda que a pessoa beba com moderação. Precisa haver uma restrição de horário. Você não pode expor crianças a essas propagandas. E precisa haver uma intervenção no conteúdo.

Houve essa mesma discussão quando se proibiu a propaganda de cigarro. O mundo acabou ou as coisas melhoraram?