Ao decidir filmar a vida de Noel Rosa (1910-1937), e isso foi há 14 anos, o cineasta Ricardo Van Steen sabia que iria enfrentar dois desafios. O primeiro dizia respeito ao mito Noel e aos guardiães dessa lenda da música popular brasileira que em apenas seis anos de atividade compôs 259 músicas, um terço delas verdadeiras preciosidades do cancioneiro nacional. O segundo, quase uma decorrência, tinha a ver com um preconceito bobo: como um paulista, sem samba no pé, ousava tocar num tema tipicamente carioca, enquadrado pela era de ouro do rádio e pela modernidade nascente do ritmo? Vencer o primeiro desafio foi demorado. Munido da melhor biografia já escrita do sambista de Vila Isabel, assinada pelo jornalista João Máximo e o músico Carlos Didier, Ricardo se impôs um ritual: sempre que terminava um tratamento do roteiro, subia o morro e ouvia o julgamento do “oráculo” do samba. Depois do vigésimo tratamento, ele gritou, enfim: “Ação!” Já o segundo obstáculo foi liquidado com uma resposta bem ao estilo do retratado: “Ora, vocês não sabem que o melhor parceiro de Noel, o Vadico, era paulista?” Portanto, é com a bênção da velha guarda e o esmero de uma década de preparo que chega aos cinemas na sexta-feira 2 Noel – poeta da Vila, um belo retrato do sambista, temperado com o humor, a poesia e a ponta de tragédia que marcaram sua vida.

Noel chega também com a aprovação das platéias: no início do ano ele ganhou o prêmio de público na Mostra Tiradentes. Para isso contou com dois trunfos: um ator que tem a cara (melhorada, claro) de Noel, o carioca de Jacarepaguá Rafael Raposo, e uma atriz que justifica a paixão devastadora do personagem, Camila Pitanga. Ela interpreta Ceci, a dançarina do cabaré Apollo que foi a perdição do sambista, morto de tuberculose aos 26 anos. Raposo, dono de voz miúda e caligrafia vacilante como o músico, ganhou o papel na raça. Ele chegou para os testes vestido de terno branco e com o cabelo empastado de gel, e disse para Ricardo: “Noel sou eu.” Ricardo lembra: “A única coisa que eu não consegui fazer foi diminuir o tamanho dele.” O ator tem 1,79 m, Noel tinha 1,65. A solução encontrada foi fazer os homens usarem plataforma e as mulheres, saltos altíssimos. Nenhum problema para Camila, que se equilibra com destreza nos saltos e no papel, segundo ela bem distante da Bebel de Paraíso tropical.

Além de Ceci, a musa de sambas como Dama do cabaré, Só pode ser você e Último desejo, Noel teve outras mulheres. Mas no filme só aparecem mais duas: a mulher, Lindaura, e a prostituta Lola. A mesma síntese aconteceu com os amigos e parceiros. Estão lá Ismael Silva, Francisco Alves, Cartola, Aracy de Almeida e Wilson Batista, com o qual o “filósofo do samba” duelava em músicas memoráveis. “Teve licença para tudo”, diz Ricardo. “Da mesma forma que as 20 mulheres maravilhosas de sua vida viraram três, os 20 sambistas que o cercavam foram reduzidos a quatro ou cinco. Como se sabe, ele teve muito mais parceiros.” Ismael Silva, protótipo do malandro, aparece no início do filme trapaceando numa esquina. Noel tenta desmascará-lo, eles trocam sopapos e nasce daí uma amizade que mudaria a música brasileira. Na seqüência, vemos Noel sendo apresentado a Cartola e a toda turma do morro.

RAPOSO, O POETA
Para viver Noel, Raposo estudou música, canto e sinuca. Teve que emagrecer 20 quilos e vestir uma cinta que era apertada à medida que a tuberculose tomava o pulmão do personagem. O pior foi usar uma prótese dentária para deformar o queixo e ficar parecido com Noel, que nasceu com seqüela do parto a fórceps. “Achei que não conseguiria falar”, diz Raposo.

CAMILA, A MUSA
Segundo Camila Pitanga, a semelhança entre Ceci e a Bebel de Paraíso tropical é que elas são da noite e têm profissões marginais. Um universo bem distante do seu: “Sou diurna, durmo com as galinhas e acordo às seis da manhã.” Camila acha que Noel retrata um Rio de Janeiro feliz: “Era uma época em que existia um intercâmbio maior entre a classe média e a classe mais baixa.”

Essa primeira parte termina com Noel compondo Com que roupa? A caminho da faculdade de medicina, ele ouve os acordes do Hino Nacional vindo de um quartel. Pára diante de uma poça d’água e imita o homem que a salta com pulos coreografados. É o mote para a criação da música, que rouba o andamento de Francisco Manuel da Silva: “Eu hoje estou pulando como um sapo/ pra ver se escapo dessa praga de urubu.” Fanáticos por Noel vão chiar, já que esse primeiro sucesso, na vida real, foi criado antes de seu ingresso na faculdade. Ricardo lembra a observação de Jean-Claude Bernardet, um dos consultores do roteiro, que sempre dizia ao cineasta quando ele comentava sobre as licenças feitas pelo roteirista Pedro Vicente: “Dane-se a vida real. Isso aqui é cinema.” E, como cinema se faz de elipses e saltos no tempo, corta- se para os últimos cinco anos de vida de Noel. O filme mergulha então numa ótima reconstituição da cena musical carioca, com a produção intensa de Noel coincidindo com a paixão por Ceci e o avanço de sua doença. Vinte e seis clássicos de Noel são lembrados. “Por uma questão narrativa, optamos por aqueles que se referem a Ceci e ao Wilson Batista”, diz Ricardo. Tratando-se de Noel, é mais que o suficiente.