Dez dias de música, cerveja e – talvez – lama. Não existe festival de rock que se preze sem chuva e lama, como constatou cerca de um milhão de pessoas que foram ao primeiro Rock in Rio, em 1985, uma data inesquecível para todas elas. Naquele ano, o comerciante Humberto Soares Filho tinha 26 anos. Com todo gás, ele não perdeu nenhum dos shows. Quando os espetáculos acabavam de madrugada, nada de voltar para casa, na Vila da Penha, zona norte da cidade. Passava as noites no acampamento montado num terreno em frente à Cidade do Rock. Perdeu a namorada e não teve nem tempo de se lamentar. Após os concertos, a turma do camping improvisado fazia baladas animadíssimas e, segundo ele, dava para arrumar uma garota por dia. Há dois anos, Soares Filho ficou paraplégico depois de reagir a um assalto. Hoje, mesmo atrelado a uma cadeira de rodas, garante que não irá perder a festa roqueira. Já garantiu os ingressos para as noites do grupo inglês Iron Maiden e do americano Red Hot Chili Peppers, duas das grandes bandas da terceira e mais ambiciosa edição do Rock in Rio. A maratona musical começa na sexta-feira 12 e promete reeditar a mística da primeira vez, em parte devido ao local onde será realizada, o mesmo terreno de Jacarepaguá, na zona oeste carioca. “Até hoje fico arrepiado com as lembranças de Fred Mercury e James Taylor. Sentávamos na lama, tomávamos banho num chafariz no meio do gramado. A gente se sentia em Woodstock”, recorda Soares Filho, que enviou uma mensagem eletrônica à produção do evento solicitando uma estrutura especial para ele e outros amigos deficientes.

Retrato de época – Até a semana passada, mais de 300 mil pessoas já haviam comprado ingressos. A previsão do empresário Roberto Medina, idealizador e responsável pela realização do festival, é a de que 1,7 milhão de pessoas circulem pela área de 250 mil metros quadrados nos sete dias de música e agito. Quando terminar, a estrutura não será desmontada. De acordo com Medina, a idéia é fazer um Rock in Rio a cada dois anos. O que não deixa de ser uma radiografia de época, mostrando quem é quem no olimpo pop-rock – dos artistas instantâneos aos mais duradouros, que vieram para ficar. Em 1985, por exemplo, o público se esbaldou com Queen, Yes, Whitesnake e James Taylor enquanto via nascer bandas como Os Paralamas do Sucesso, que por sinal não estará no Rock in Rio 3. Muda também a maneira de se sintonizar. Há 16 anos, quem não estava lá, ao vivo, só podia curtir alguns flashes pela televisão. Agora, os caseiros poderão acompanhar as performances de N’ Sync, Foofighters ou Pato Fu em tempo real pelo site oficial www.rockinrio.com.br.

Transmissões de espetáculos pela internet, aliás, vêm se tornando uma tendência, mas nem por isso devem afastar o público dos mega eventos. “O legal é estar ali. O show virtual nunca substituirá o real”, acredita Medina. Na televisão, a Directv vai transmitir tudo ao vivo. Quase tudo, já que vão ser três palcos com concertos simultâneos. Ao todo, serão 139 atrações, representantes de todos os estilos musicais. Todos mesmo, da erudição da Orquestra Sinfônica Brasileira, que abre a primeira noite, ao som peso pesado do Sepultura. Do pop comportado de Sandy e Junior às experimentações eletrônicas do DJ Memê, passando pelo som de raízes de gente como Dedé Saint-Prix, da Martinica. Tal ecletismo faz com que muitos torçam o nariz. O estatístico Perez Beneques, que também suspira de saudades do primeiro festival, não é muito fã da atual seleção. Mesmo assim, irá à Cidade do Rock. “Ver pela televisão não tem o menor astral e emoção”, diz. Beneques tinha 16 anos na época e foi a três dias do festival com um grupo de amigos. A emoção foi tamanha que ele começou a colecionar tudo o que dizia respeito ao evento. Tem duas pastas com revistas, ingressos originais, buttons, viseira e camisas. Na sexta-feira 19, irá com a mulher ver Iron Maiden.

Assim como o Free Jazz Festival, que foi se distanciando cada vez mais da proposta do jazz, o Rock in Rio 3 também aposta no eclético. Além do Palco Mundo, onde se apresentarão as grandes estrelas, três tendas realizarão shows nos intervalos. A Tenda Raízes quer mostrar um panorama com artistas de várias partes do mundo, privilegiando sons regionais. Há desde o respeitado maestro Ray Lema, do Zaire, que, com seu grupo, faz uma interessante fusão da música africana, sobretudo do Marrocos e de Camarões, ao caboverdiano Teófilo Chantre, compositor predileto de Cesária Évora. A Tenda Brasil mostrará cantores e bandas nacionais em apresentações mais intimistas, como as de Arnaldo Antunes e Nando Reis. E a Tenda Rock in Rio Eletro pretende atrair o povo chegado no bate-estaca promovido pelos DJs. O Rock in Rio 3, que vem com o subtítulo Por um mundo melhor, batizou uma quarta tenda com o mesmo nome, onde vão rolar discussões com sociólogos antes do início dos concertos. Para dar um sentido social ao evento, Medina prometeu destinar a projetos educacionais 5% do valor líquido de todo o faturamento da venda de ingressos, patrocínio e licenciamento – calcula-se que o festival renderá perto de R$ 240 milhões. Até agora, já estão sendo beneficiados cerca de 2,5 mil jovens, mas a intenção é chegar a mais de dez mil.

Vendagem – O empresário, salvo algumas exceções, selecionou suas atrações baseado em números de vendagem de discos no Brasil. São elas que ocuparão o Palco Mundo, um gigante de quatro mil metros quadrados e 80 metros de altura, que receberá 45 shows, contando estrangeiros e brasileiros. O cast tupiniquim ficou desfalcado no início de novembro. O Rappa, Raimundos, Jota Quest, Charlie Brown Jr, Skank e Cidade Negra deixaram o festival descontentes com o tratamento da produção. Não queriam abrir os espetáculos tocando sob o sol. Mesmo com a debandada, o Brasil será bem representado por Moraes Moreira e seu Trio Elétrico, Sandra de Sá, Elba Ramalho e Zé Ramalho e Mestre Ambrósio, entre outros.

Alguns artistas estão de volta ao evento, como o líder do Barão Vermelho, Roberto Frejat, que em 1985 tocou com Cazuza à frente do grupo numa apresentação histórica. “Foi a primeira vez que o Brasil entrou no mercado do show biz internacional”, lembra o vocalista e guitarrista que, neste ano, destaca o dinossauro Neil Young. “Tenho todos os discos dele, até os que não gravou”, brinca. “Vou estar no gramado, no meio de todo mundo.” Frejat e mais várias centenas de dinossauros anônimos.

Destaques Internacionais
R.E.M. A banda favorita do presidente Bill Clinton foi formada em 1980 na cidade de Athens, Estado americano da Geórgia, e ganhou fama nas rádios universitárias, antes de acontecer no resto do mundo. Faz um rock melodioso, criativo, pilotado pelo singular vocal grave-agudo de Michael Stipe e pela guitarra de concepção beatlemaníaca de Peter Buck. Seus maiores sucessos são Losing my religion e Shiny happy people. No momento, o grupo está em fase de finalização do álbum Lush, atmospheric, melodic, previsto para ser lançado em abril de 2001. É a atração de maior peso do festival. (A.R.)
 
Neil Young Este canadense de Toronto iniciou sua grande saga em 1966 como integrante da banda Buffalo Springfield. Ao lado de David Crosby (vocais e guitarra), Stephen Stills (vocais, guitarra, baixo e teclados) e Graham Nash (vocais e guitarra), formou o antológico Crosby, Stills, Nash & Young, que tinha como característica a profusão de guitarras e vocais diversificados. Seu estilo country-rock, com incursões inclusive pela música eletrônica, até hoje é admirado tanto por fãs que o assistiram em Woodstock quanto por admiradores do Pearl Jam, que foi por ele influenciado. Entre seus hits estão Hey, hey, my my e Heart of gold. Recentemente lançou o CD Silver & gold. Dinossauro de respeito. (A.R.)
 
Oasis Pretensão é o que não falta ao quarteto inglês liderado pelos irmãos Noel e Liam Gallagher. Desde seu início em Manchester, em 1993, a atual mais famosa banda do chamado britpop se autodenomina tão boa quanto os Beatles, de quem eles fazem quase um xerox. Justamente pela inspiração, o Oasis produziu bons discos que marcaram o cenário musical dos anos 90. Canções como Wonderwall e D’you know what I mean, ressaltadas pela guitarra vigorosa de Noel e pela voz rouca e quente de Liam, são exemplos da safra da banda, que, mesmo com todas as mudanças na sua formação, continua vendendo milhões. Revival no som e no corte de cabelo. (I.C.)
 
Beck Dono de um estilo cerebral, sem cair na chatice, o californiano de Los Angeles, Beck Hansen, faz um som vitaminado por influências diversas que vão dos Beatles ao rap. Pessoalmente é admirador dos Mutantes e de Caetano Veloso. Em seu disco mais recente, Midnite vultures, com elegância sensata destacou algumas linhas melódicas do funk, agregou sons orientais, desenhou climas psicodélicos e dramáticos e aplicou algo da sensualidade latina. Seus exercícios musicais são muito admirados pelos modernos sem vínculos explícitos com a moda. (A.R.)
 
Britney Spears Com mais de 14 milhões de cópias vendidas de seus dois discos Oops!… I did it again e …Baby one more time, aos 18 anos a virgem de Los Angeles é o maior fenômeno musical americano dos últimos tempos. Muita gente torce o nariz para ela. Madonna, não. Só pra contrariar, a diva pop subiu no palco de um de seus shows recentes usando uma camiseta com o nome da cantora estampado. Na noite pipoca com milk shake, ela surge como uma espécie de Sandy apimentada. (C.M.)
 
Guns N’ Roses Fez enorme sucesso no início da década de 90, com o disco Apetite for destruction, mas o choque de egos implodiu a banda. Foi ressuscitada para o festival. Da formação original, permanece apenas Axl Rose, o ego dos egos. Encabeça um dos dias mais procurados. Som pesado na mesma proporção da arrogância. (C.M.)

Destaques Nacionais
Barão Vermelho Veterano de festivais e às vésperas de “férias coletivas” depois de duas décadas de pura pauleira, o grupo carioca liderado por Roberto Frejat tem um balaio de sucessos nas costas. A banda andou namorando a música eletrônica, mas voltou rapidinho para o rock básico num ótimo álbum acústico. Festa garantida desde o primeiro acorde. (L.C.)
 
Luiz Melodia Atravessando a melhor fase de sua carreira, devido às releituras acústicas de seu repertório e à sobriedade que se impôs, o felino compositor de pérolas negras da MPB personifica a conexão morro-asfalto. Carioca do Estácio, seu nome começou a se tornar conhecido quando Gal Costa, em sua fase Fatal, no começo dos anos 70, praticamente o adotou como compositor predileto. Hoje, mais chique e, principalmente, mais profissional, o que lhe garantiu maior empatia com o público e, claro, com as gravadoras, Melô deixou de ser alternativo para ter destaque na mídia e num festival deste porte. Promete. (L.C.)
 
Gilberto Gil Em meio à turnê mundial de lançamento de seu disco em parceria com Milton Nascimento, o baiano faz um intervalo para surgir em sua arena favorita: o palco de um megafestival. Como sempre quis acompanhar o pique do público, deve aproveitar para tocar alguns dos inúmeros rocks que compôs ao longo da carreira. Mesmo cinquentão, Gil continua atraindo uma quantidade imensa de jovens aos seus espetáculos, nos quais também não faltam referências a Bob Marley – ele, inclusive, prepara para breve um disco só com versões de Marley. Há quase dois anos, Gil teve um problema nas cordas vocais, a voz enfraqueceu, mas seu jeito zen espanta qualquer baixo-astral ou imperfeição. (L.C.)
 
Kid Abelha Apesar do ódio injusto da maioria dos críticos, a banda carioca se mantém incólume há quase 20 anos. Tanta durabilidade é sintoma de que seu pop-romântico, embalado pela voz suave de Paula Toller, agrada em cheio os fãs. Diversão garantida. (C.F.)
 
Cássia Eller Seja com blues ou rock nacionais, com a música brasileira ou releituras de clássicos do pop-rock internacional, a cantora já provou que é uma das intérpretes nativas mais vibrantes surgidas nos últimos tempos. Sua voz rascante, performances que não deixam as platéias indiferentes e um repertório de primeira, que vai de Cazuza a Otis Redding, sempre com ênfase na força blues-roqueira, fazem de Cássia Eller uma imponência. Quando abriu os shows de Bob Dylan e Rolling Stones no Brasil, provou que tem munição de sobra para domar grandes multidões. (C.F.)
 
Carlinhos Brown Inventor da Timbalada – grupo e ritmo de forte influência africana com tempero baiano –, o cantor e compositor costuma levantar até platéias estrangeiras, obviamente menos acostumadas às suas intempéries rítmicas. Quando fala, Brown é um caldeirão efervescente de expressões e idéias aparentemente desconexas, mas que traduzem sua intensidade artística. Não à toa ele é um dos músicos mais queridos de estrelas como Marisa Monte, com quem produziu boas parcerias. Ele já avisou que na sua noite haverá surpresas. A Cidade do Rock vai tremer. (A.R.)