O médico mais famoso do Brasil conta sua experiência à beira da morte por causa da febre amarela, contraída na Amazônia

O oncologista Drauzio Varella não se contenta em fazer uma coisa só. Já foi professor de cursinho, voluntário em casa de detenção e começou a virar celebridade com programas de rádio nos anos 80. Hoje, tem espaço cativo na maior emissora de tevê do Brasil – está desde 2000 na Globo – e frequenta as prateleiras das grandes livrarias. Mas jamais deixou de lado a medicina, ofício pelo qual não esconde a paixão. Apesar de toda a sua experiência, correu sério risco de morte. Em novembro passado, numa visita rotineira à Amazônia (para onde se dirige todos os anos para orientar trabalhos de pesquisa), contraiu a febre amarela, doença transmitida pela picada do Aedes aegypti e que compromete o funcionamento do fígado. Não teria caído doente se tivesse tomado a vacina. Admite que errou ao ter se descuidado e confessa ter sido ainda mais irresponsável por ter levado a família e amigos à região sem atentar para a prevenção.

O episódio foi marcante também porque ele se viu cobrado pela população. Afinal, Varella criou para si a imagem de médico-educador. É por isso que hoje, volta e meia, ouve gracejos na rua sobre seu descuido, que também virou piada na boca de um conhecido que ia para Mato Grosso e respondeu, quando alertado por um amigo para não se esquecer da vacina contra febre amarela: “Está achando que sou o Drauzio Varella?” Recuperado da doença, Varella retomou seu quadro dominical e está atento a um novo projeto. O livro Estação Carandiru, que conta histórias de presidiários no outrora maior complexo penitenciário da América Latina, em São Paulo, já virou filme e agora inspira uma série para tevê com estréia prevista na
Rede Globo neste semestre. Foi numa pausa em seu consultório, em São Paulo, que o médico falou a ISTOÉ.

ISTOÉ – O sr. ficou muito doente por causa da febre amarela adquirida durante uma viagem à Amazônia. Como foi essa experiência?
Drauzio Varella

Fui para a mesma área da Amazônia pela primeira vez em 1992 e desde então tenho ido com regularidade. Nunca ouvi falar de febre amarela lá. Tinha tomado a vacina havia mais de 20 anos e não renovei. Fui ainda mais irresponsável porque levei minhas filhas e amigos. A gente se estrepa na vida quando repete uma experiência muitas vezes. Na primeira vez que você pega estrada, não há chance de bater o carro porque você nem pisca. Você bate quando ganha autoconfiança.

ISTOÉ – Qual é a sensação de ser o paciente e não o médico?
Drauzio Varella

Fiquei bem tranquilo. Tinha noção da realidade e, em dado momento, tive chance grande de morrer. Pensei que não fosse escapar. É uma sensação pavorosa. Você sente um enjôo forte. Não pode pôr nada na boca porque volta imediatamente. Fiquei três semanas sem comer nada, tomando soro. Dá dor muscular, febre, frio, fraqueza. A doença vem devagar e te exaure a um ponto que você não tem como reagir. O que ia fazer? Você pensa: “Seja o que Deus quiser.”

ISTOÉ – O sr. pensou em Deus?
Drauzio Varella

Não. Estou brincando. Essa questão de fé… É engraçado! Sempre me perguntam isso e se ofendem com a resposta. As pessoas não aceitam que você não seja religioso. É preciso respeitar o católico, o evangélico, o espírita. Mas, quando você diz que não tem religião, ninguém respeita. É como se você fosse imoral. As pessoas ficam muito decepcionadas. Como se descobrissem que seu médico cheira cocaína.

ISTOÉ – O sr. confiou nos médicos?
Drauzio Varella

Tive a felicidade de ser tratado por colegas que conheço há anos, inclusive dois dos maiores especialistas em fígado no Brasil. Fizemos um acordo. Eu saberia tudo, teria acesso aos exames. O interessante é o que você decifra pelo que não é falado. Quando as coisas estavam graves, pela expressão eu notava que eles estavam mortos de medo. Eles não diziam nada nem eu perguntava. Há momentos em que as palavras são inúteis. Mas não me desesperei. Quando se tem chance de escapar, você se agarra a essa esperança. Ao “pode ser que não aconteça”.

ISTOÉ – A experiência mudou sua forma de encarar a vida?
Drauzio Varella

Não. Sabia da possibilidade de perder a vida, mas sempre vivi de acordo com essa realidade. Sei que a vida é frágil.

ISTOÉ – Mas o sr. nem mudou hábitos para, por exemplo, ter mais tempo para a vida pessoal?
Drauzio Varella

Não. Isso geralmente acontece com quem acha que esse tipo de coisa tem pouca chance de acontecer com ele.

ISTOÉ – E a sua relação com os pacientes? Mudou?
Drauzio Varella

Em nada. Retomei a convivência do ponto onde havia parado.

ISTOÉ – Seus pacientes e telespectadores cobraram o sr. por não ter se protegido contra a doença?
Drauzio Varella

Muito. Na rua tem gente que me diz: “Ô doutor! E a vacina, hein?”
E isso não foi uma vez nem duas, foram umas 20. Qualquer vagabundo que passa tira sarro. Um amigo me contou que estava conversando com uma pessoa que ia pescar em Mato Grosso. Esse amigo disse para o sujeito: “Não esquece de tomar a vacina contra febre amarela.” Aí o outro respondeu: “Está pensando que sou o Drauzio Varella?”

ISTOÉ – Alguma vez o sr. viu pacientes ?condenados? que, ao ganhar mais tempo de vida do que o previsto, atribuíram isso à força da mente?
Drauzio Varella

Isso são crendices. É como pensar que o basquete deixa as pessoas altas. Se você pega alguém com um prognóstico de evolução grave a curto prazo e ele vive mais tempo, dizem: “Está vivo, mas também tem uma força de vida!” É a mesma lógica do basquete. Se jogar, a pessoa fica alta porque todos são altos. E quanto aos que tinham vontade de viver e morreram? Com esse raciocínio você joga no paciente a culpa pela evolução da doença. Se ele não reage porque não tem forças, a culpa é dele. Quando estava doente, fiquei três semanas sem comer nada, vomitava tudo. A nutricionista entrava no meu quarto todos os dias e me oferecia comida. Cada prato que ela falava me dava mais enjôo. Uma hora eu falei “Pára, por favor. Quando puder comer, eu peço.”

ISTOÉ – Como o sr. enxerga a morte?
Drauzio Varella

Há uma dificuldade muito grande em entender que a vida termina. Gostaria de acreditar que vou permanecer vivo, olhando do céu o que vai acontecer com minhas filhas e netas. Mas não consigo.

ISTOÉ – Como é ser médico e comunicador?
Drauzio Varella

A televisão torna as pessoas populares instantaneamente. E nem precisa fazer nada inteligente. Basta participar do Big Brother. Fui professor de cursinho por 20 anos. Tenho prazer em ensinar. Em 1985, fui para um congresso de Aids. Quando voltei, dei uma entrevista para uma rádio. Ninguém falava sobre o tema ainda. Depois de um mês, encontrei um amigo que tinha ouvido a entrevista um dia antes. Liguei e perguntei se veicularam a entrevista de novo. E me disseram que estavam repetindo o mês todo. Senti um mal-estar. Médico sério não aparecia na imprensa. Os que faziam eram picaretas. Passados uns dias, o amigo sugeriu que eu fizesse mais isso no rádio. Respondi que ia me trazer problemas com os colegas porque a classe é muito patrulhadora. Mas depois pensei: “Ele está com uma idéia maior e eu com esse pensamento paroquial? A proposta é levar informação a milhões de pessoas e eu preocupado com o que vai dizer meu vizinho de sala?” Resolvi testar. Deu certo e fiquei mais de seis anos no rádio. Depois veio a televisão.

ISTOÉ – E virar celebridade? Alguém já chamou o sr. de marqueteiro?
Drauzio Varella

Podem até falar que sou marqueteiro. Tenho uma defesa: dedico à medicina 70% do meu tempo, sou estudioso e quem me conhece sabe que não sou ignorante. Tenho vontade de melhorar o trabalho em televisão e de aprender mais. Acredito que a função mais importante da medicina é divulgar o conhecimento. E a solução é investir na prevenção. Estou convencido de que a maioria das doenças ocorre por erros do dia a dia, que se somam. Os médicos vivem dizendo que o povo é ignorante e eu pergunto se alguém explica os problemas para a população. Temos de falar com as pessoas. Há muitos médicos bem-intencionados que acham que a medicina deve ser feita entre quatro paredes, só com o paciente. Tenho o maior respeito por eles, mas acho uma idéia antiquada. Tem um outro tipo de médico, o competitivo. Esses eu não tenho como evitar que falem mal de mim. A crítica que mais ouço é que me meto a falar de tudo. Vou usar a tevê só para falar de câncer? É ridículo. Falo algo errado? Isso ninguém contesta porque eu estudo feito um tarado para fazer cada série.

ISTOÉ – Por que é tão difícil cuidar da saúde?
Drauzio Varella

Somos ótimos planejadores a curto prazo. Mas e pensar como estará o corpo daqui a cinco anos? Nós não sabemos fazer isso porque isso não foi essencial para nossa sobrevivência. A humanidade tem cinco milhões de anos. O que adiantava pensar dali a cinco anos? O cara tinha que pensar no almoço dele. As preocupações eram imediatas. Fomos programados para comer bastante, acumular energia para gastar e descansar no intervalo. Comer, calçar um tênis e sair para correr é absolutamente contra a natureza. Só se você colocar como algo muito importante, prioridade mesmo.

ISTOÉ – O que acha da medicina alternativa?
Drauzio Varella

Sempre falo coisas que deixam muita gente brava. Sabe o que eu acho? Você toma um tiro, vai para o hospital e não quer saber de escolher, quer é tirar a bala. Não há alternativa. Nossa medicina é a melhor que o homem foi capaz de desenvolver. Quando surge uma nova técnica, é preciso provar que é útil. Para isso só existe a metodologia científica. Se não houver provas de que funciona, não pode ser aceita. Se é bom, prova. Do contrário, é quase uma religião. Se você não tiver controle objetivo, não tem como analisar resultados. E esse pessoal da medicina alternativa quer fazer esse trabalho sem metodologia científica. Fica difícil porque você tem de acreditar nos resultados e a medicina não funciona na base da crença. Nós não nos entendemos com eles porque não é possível. Não é competição. Só não falamos a mesma língua.

ISTOÉ – O que o sr. acha das insinuações de que médicos fazem acordos com laboratórios farmacêuticos para receitar remédios?
Drauzio Varella

Já ouvi falar disso, mas nunca vi ninguém receitar remédio e receber por isso. Acho que a relação com a indústria é mais sutil. Nós devemos muito aos laboratórios. A maior parte das pessoas que vai a congressos internacionais é patrocinada pela indústria farmacêutica. Isso quer dizer que eles pagam para o médico receitar o remédio? Não, e nem precisa. Eles pagam para o médico se atualizar. O médico atualizado vai receitar o melhor remédio, o que coincide com o interesse da indústria. Tem uma relação indireta aí. Eles estão pagando a viagem. Receitar ou não o remédio do laboratório não vem ao caso nem a indústria está interessada nesse jogo.

ISTOÉ – O que o sr. acha do aborto?
Drauzio Varella

Nós estamos tão atrasados nessa área que não conseguimos nem dar recursos para as meninas não engravidarem, o que é anterior à questão do aborto. Sou contra o aborto! Nem a mulher que faz é a favor. Ninguém é mais contra do que ela. Na hora, está inundada por hormônios que a fazem querer ter o filho. Ela só faz porque não vê outra solução. Na verdade, o aborto é livre no Brasil. Se você engravidar hoje à noite, daqui a um mês você pode fazer um aborto em São Paulo sem nenhum problema. Só precisa ter dinheiro. Aqui, o aborto é livre para quem tem dinheiro e não é para quem não pode pagar. Essa é a realidade brasileira, mantida pela Igreja e pelos políticos.