Em junho de 1944, os Aliados deram o primeiro e mais importante passo para reconquistar a Europa Ocidental tomada por Hitler. Relembre, em vídeo, como foram os desembarques na Normandia:

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Soa inacreditável, apesar de absolutamente verdadeiro, o fato de uma unidade militar incomum ter iniciado o processo que pôs fim à Segunda Guerra Mundial. Brutus era um piloto de caça polonês de 1,67 m. Bronx, uma peruana que amava indiscriminadamente homens e mulheres e era viciada em jogos de azar. Treasure, francesa, tinha paixão pelo seu cão e se tornou uma mulher histérica ao se ver longe dele. O sérvio Tricycle era um dom-juan com queda por festas e álcool. E, finalmente, o espanhol Garbo fora um avicultor diplomado em uma das maiores escolas de criadores de galinha da Espanha. Codinomes, respectivamente, de Roman Czerniawski, Elvira de la Fuente Chaudoir, Lily Sergeyev, Dusan Popov e Juan Pujol García. Esses agentes e suas personalidades pitorescas formaram o núcleo do sistema Double Cross do serviço de segurança britânico especializado na conversão de espiões nazistas em agentes duplos das Forças Aliadas. Sem disparar um tiro, de mentira em mentira contada aos alemães, eles foram uma das principais armas a derrubar os soldados de Hitler na batalha que deu início à queda do nazismo.

No episódio conhecido como Dia D, ocorrido em 6 de junho de 1944, tropas aliadas invadiram a Normandia, no norte da França, enquanto a maior concentração do Exército do Führer aguardava um ataque que jamais viria a acontecer em Calais, a leste. Foram esses cinco espiões que tornaram o embuste crível. Essa estratégia está contada pela primeira vez no livro “Jogo Duplo – A Verdadeira História dos Espiões do Dia D”, do escritor inglês Ben Macintyre, também colunista e editor do jornal inglês “The Times”. “A ideia de que tais indivíduos tiveram nas mãos o destino de uma operação militar tão importante é perturbadora”, disse o autor ao jornal português “Correio da Manhã”. Foi lançado pela editora D. Quixote, em Portugal, país no qual moraram muitos delatores na época da Segunda Guerra. “É extraordinário que esse jogo de apostas que pôs a vida de milhares de cidadãos em risco tenha dependido do caráter de pessoas tão peculiares e excêntricas. Ninguém confiaria nelas para alguma coisa nem em tempos de paz”, diz o autor.

Assim podia se pensar do espanhol García, o agente Garbo. Antes de “arapongar” para os britânicos, dirigiu um aviário. Detalhe: não gostava de galinhas. Também havia sido um oficial de cavalaria – mas tinha medo de cavalos. Aos alemães dizia que espionava os britânicos in loco, quando, na verdade, morava em Lisboa. Mesmo assim, passava informações sobre a Marinha local e sobre fabricantes de munição que possuía, valendo-se de livros de segunda mão e do acervo da biblioteca pública da capital portuguesa. Garbo criou um exército de espiões fictícios supostamente recrutados por ele a serviço de Hitler. Dizia ter 24 agentes, mas apenas um, ele próprio, existia de verdade. Um desses personagens inventados era o empresário suíço-alemão morador de Liverpool chamado William Gebers, que precisou ser morto para que o espanhol não caísse em contradição. O MI5, o serviço de segurança britânico, “plantou” o obituário Gebers no “Liverpool Echo”, para que García pudesse recortá-lo e enviá-lo à Alemanha. Recebeu de volta uma carta de pêsames.

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Ao contrário de García, Czerniawski, o agente Brutus, chegou a ter uma rede de espionagem de verdade com meia centena de agentes na França até ser preso com o desmonte da célula pelos alemães. Antes de ser levado ao fuzilamento, o polonês conseguiu um acordo a fim de ser enviado à Inglaterra e espionar para os nazistas. Já em liberdade, aproveitou o trânsito entre o inimigo para atuar a serviço dos britânicos. Segundo Macintyre, os alemães não duvidavam de agentes como Garbo e Brutus porque não queriam descobrir que estavam sendo enganados: “Hitler exigia resultados concretos e, se em um sistema hierárquico tão rígido e ditatorial o chefe diz que quer resultados rápidos e volumosos, os serviços secretos reproduzem o que o líder quer ouvir sem se importarem se é verdade ou não.”

Essa brecha permitiu que Dusan Popov, um mulherengo compulsivo, vivesse dias de marajá com o dinheiro que recebia dos alemães. Dos aliados, esse sérvio não exigia salário, desde que fosse abastecido de álcool, divertimento e mulheres. “As dívidas de Popov, grandes e pequenas, não o largavam”, escreve o autor. “Devia mais de US$ 10 mil ao FBI, alguns milhares ao MI5 em Nova York, algumas centenas à companhia telefônica de Long Island. Não pagou ninguém e limitou-se a enviar as contas ao próprio MI5, juntamente com a fatura do seu alfaiate, referente a 18 camisas de seda e 12 lenços com monograma.” Macintyre teve acesso a tais detalhes após o serviço de segurança britânico ter tornado público seus arquivos da guerra. A correspondência da peruana Elvira Chaudoir mostra que os relatórios produzidos por ela eram avaliados como “muito importantes” pelos alemães. Foi, no entanto, com Lily, a agente Treasure, que as Forças Aliadas correram mais risco. Tudo porque a emigração inglesa não permitiu que ela embarcasse com o seu cachorro, Babs – exigiu que ficasse isolado seis meses até que fosse declarado livre de doenças. Os arquivos da guerra revelaram que a supervisora da espiã sugeriu que a Marinha britânica transportasse o animal ilegalmente até ela. E isso às vésperas de um combate decisivo.

Apesar das idiossincrasias, esses agentes duplos vinham demonstrando uma capacidade ímpar de influenciar a estratégia alemã. Cinco dias antes do Dia D, o Führer declarou ao seu confidente, o general japonês Hiroshi Oshima, que tinha “indicadores óbvios” dos agentes para acreditar que os aliados fariam uma manobra de diversão na Normandia e promoveriam uma invasão mais poderosa em Calais. Hitler “depositava uma confiança quase mítica em Garbo”, segundo um relatório do MI5. Mesmo depois do fim da Segunda Guerra, militares alemães preferiam acreditar numa mudança de planos dos aliados feita na última hora a admitir que tinham sido ludibriados. Eis a prova, enviada ao espanhol Garbo pelos seus superiores alemães, dois meses após a invasão aliada: “O Führer lhe concedeu a Cruz de Ferro pelos seus serviços extraordinários.” Soa inacreditável, mas, novamente, é verdade.