Inconformado com a crítica desfavorável publicada em ISTOÉ sobre um de seus romances, o talentoso e impulsivo José Carlos Oliveira vociferou em agosto de 1981: “Não serei assassinado por esses comunistas que mataram Glauber Rocha, João do Rio e Lima Barreto!” Carlinhos Oliveira, como era
conhecido, imaginava injustamente que a resenha que espinafrava o livro Um novo animal na floresta era parte de um complô contra ele. Não era. Morreria em 1986, aos 52 anos, vitimado pela pancreatite e pela diabete. Desde então, mesmo sem complô, sua obra foi praticamente enterrada. Tratamento inexplicável para um estilista da crônica que durante 23 anos escreveu para o Jornal do Brasil, além de outras publicações, com qualidade comparável à de Paulo Mendes Campos, Fernando Sabino e Rubem Braga. Esse lapso começa a ser reparado com o lançamento de dois livros do autor: O homem na varanda do Antonio’s (Civilização Brasileira, 308 págs., R$ 34,90) e Diário selvagem (518 págs., R$ 52,90). O primeiro é uma coletânea de crônicas em que Oliveira descreve com talento a Ipanema lendária das décadas de 1960 e 70, povoada por personalidades como Glauber Rocha, Tom Jobim, Juscelino Kubitschek e Rudolf Nureyev. Já no diário, o charme e a tensão da época ficam em segundo plano. Aparece o drama pessoal do autor, que lutava contra a doença para tentar inscrever seu nome entre os maiores da literatura. No relato dessa busca, revela a alma poética, solitária, egocêntrica e sacana. Um texto visceral como não se faz mais nesses tempos em que até as confissões íntimas são copidescadas ao gosto do mercado.

É essa uma das maiores qualidades de Diário selvagem: a exposição do autor por inteiro, sem pudores morais ou físicos. Em vários trechos, o capixaba franzino, de óculos e cabelos ralos, lamenta ter que escrever por dinheiro. “O pior é não ter mais ânimo para escrever baboseiras de revista ‘masculina’. Que farei da minha vida? Vem aí uma crise econômica medonha.” Queria se dedicar ao fazer literário, caminhar para onde seu ego apontava. Comparava-se a Hemingway, considerava elogios que o igualavam a Faulkner. Inflava-se assim, talvez, para seguir escrevendo em meio às brutais dores no pâncreas, e à hemorragia, que o obrigavam a um coquetel de remédios. Maltratado pela doença e pela luta para curar-se, mesmo assim conseguia priorizar a criação. “Escuto o pensamento: está silente, no vestíbulo do murmúrio, antes do som e da sílaba. Me agradaria viver, dia e noite, nesta região.” Apesar de assíduo no burburinho dos bares, mal sabia lidar com os que o cercavam. “O mundo real me parece impenetrável. Ainda não sou meu contemporâneo.” Era humanista, mas não marcou posição política nos anos de chumbo da ditadura. Temia, por isso, que os intelectuais de esquerda o boicotassem, como fizeram com Glauber Rocha, seu amigo. Entre esses “comunas”, como dizia, incluiu o poeta Ferreira Gullar, com quem se indispôs. Cunhou então o verbo “glauberizar”, como sinônimo de perseguição.

O responsável pelo tardio resgate de José Carlos Oliveira é o jornalista Jason Tércio, que em 1999 escreveu sua biografia. Ele organizou o diário e coordenou a edição das crônicas que compõem O homem na varanda do Antonio’s. Nessa obra, o leitor encontrará um escritor que domina seu ofício, a destilar humor e inteligência. Seu hábitat era Ipanema, de uma época longínqua em que os amigos eram tratados por “amizadinha”, alternativos eram “udigrudis” e a banda do bairro ainda tinha maioria de heterossexuais. No seu lugar cativo no restaurante Antonio’s ou em caminhadas pelo território ipanemense, usava a peneira dos fatos banais para garimpar diamantes. Em texto de 1961, descreveu impiedosamente a dança do rock’n’roll, que começava a virar febre. “Se desejam acariciar, não conseguem mais que uma investida brutal: o parceiro é então projetado no espaço, sobre a cabeça, ou entre as pernas de seu comparsa. E ambos manifestam desejo de regressão”, escreveu. Sua opinião sobre o Brasil e os brasileiros não era das melhores. Argumentava que não somos chegados a arroubos, não sabemos fazer revoluções sangrentas, não merecemos nem o céu nem o inferno. “Vamos todos para o purgatório, que é lugar entediante.”

Apesar da visão ácida, em muitos momentos, emanava ternura, como
quando escreveu sobre a morte de Antonio Maria. “E ouçamos o silêncio
de Antonio Maria – em surdina, como se os astros cantassem, podemos ouvir as canções que tremiam em sua garganta no momento final.” Em uma das crônicas, prescreve como receita para uma vida satisfatória aquilo que se pode encontrar, em detalhes, relatado em seu diário: “Viver tão intensamente que possa dizer à morte, quando vier: Já veio tarde.” A obra de Carlinhos Oliveira renasce. E não deixa de ser irônico que, no mesmo espaço em que o autor imaginou um complô contra si, esse fato seja comemorado.