Felizarda Novela pode parecer um nome fantasia. Não é. Aos 42 anos, extremamente doente e estendida à sombra de um cajueiro, Felizarda é o retrato da África negra e miserável dizimada pela Aids. Ela está entre os 1,5 milhão de portadores do HIV de Moçambique, país de colonização portuguesa localizado na costa africana do oceano Índico. A nação tem 20 milhões de habitantes e cerca de 15% de sua população acima de 15 anos está infectada – a doença mata 100 mil dos seus habitantes por ano. Só para ter uma idéia do tamanho da tragédia por lá, basta saber que o Brasil tem estimados 600 mil portadores do vírus, menos de 0,4% da população. Em algumas regiões de Moçambique – particularmente nas áreas de fronteira, nos caminhos para as minas da África do Sul e nos corredores de caminhoneiros –, a taxa de infecção pelo HIV chega a 30%.

Nas principais avenidas de Maputo, capital moçambicana, e à beira das grandes rodovias, outdoors alertam para o risco da doença. “Onde está a mulher?”, diz
um deles. “Foi traída pela Sida” (sigla de Síndrome da Imunodeficiência Adquirida, a Aids). Outros cartazes chamam a atenção para os jovens, os idosos, os caminhoneiros, os garimpeiros, os órfãos. Sempre com fundo branco e o recorte de um personagem em negro, os outdoors foram instalados há três anos. Já desbotaram e ninguém mais presta atenção neles.

Felizarda Novela foi vítima por ser mulher e por ser mulher de garimpeiro. Como muitos dos homens que habitam a província de Gaza, no Sul de Moçambique, seu marido também foi embora em busca de trabalho nas minas de ouro e de diamantes da vizinha África do Sul. Trouxe algum dinheiro e o HIV. Na segunda visita, quando encontrou Felizarda já doente, levou embora três dos quatro filhos e desapareceu. Agora ela vive com Madalena, nove anos, a única dos filhos que o pai não levou. A cada semana, ativistas da Associação Tchavelelo passam para visitá-la. Não trazem remédios nem alimentos, apenas consolo.

O marido de Felizarda seguiu a regra que prevalece em quase toda a África abaixo do Saara: quando a mulher cai doente, é expulsa de casa e perde os filhos (já o homem nunca faz o teste nem procura ajuda médica). Foi assim com Cacilda Mandlate, 27 anos, que não anda há seis meses e cujo marido foi embora com os dois filhos depois que descobriu que ela estava com Aids. Cacilda vive com a mãe na periferia de Maputo. Na mesma região mora Laura Cumbe, 20 anos, dois filhos, abandonada pelo marido, que nunca mais deu notícias. Drama semelhante ao de Marta Tovela, 23 anos, moradora na zona rural de Manjacaze, no Sul do país. Marta perdeu os pais com a Aids e agora vive com um irmão de 12 anos. Também com a doença (que não sabe como pegou), ela não consegue mais andar e trabalha para uma vizinha limpando cocana, uma verdura muito comum nas matas da região e com a qual se faz uma sopa rala.

Na África, o número de mulheres com Aids já passou o de homens. Nas clínicas de testagens para HIV de Moçambique, por exemplo, há três adolescentes infectadas para cada rapaz – não se sabe, no entanto, o total exato de adultas com a doença. No Brasil, há uma mulher doente para cada dois homens. O coquetel de drogas contra a doença está sendo oferecido a menos de oito mil pacientes dos cerca de 300 mil que esperam por tratamento em Moçambique. No Hospital Central de Maputo, os médicos selecionam quem receberá o tratamento. É a “escolha de Sofia”, separando aqueles que poderão viver daqueles que certamente irão morrer.

A médica Rosana Del Bianco, do Centro de Referência de Aids de São Paulo, assessora os colegas do hospital de Maputo. Ela está na equipe brasileira do projeto Ntwanano, parceria entre o governo moçambicano e o Ministério da Saúde do Brasil. Além do treinamento em tratamentos, o projeto tem uma frente dedicada aos direitos humanos. Especialistas brasileiros assessoram ongs locais em programas de visitas domiciliares e na defesa dos direitos dos portadores. “Aqui, os doentes ainda são pessoas morrendo com Aids, não vivendo com Aids”, diz Fernando Sefnner, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul e integrante do programa.

Sem riquezas minerais e abatido por duas guerras – a de libertação e a civil –, Moçambique só agora começa a tratar a Aids como epidemia. Nas páginas dos jornais e nas notícias da tevê, os mortos pela enfermidade aparecem como vítimas de “doença prolongada”. Nelson Mandela, herói sul-africano que vive em Maputo, transformou-se recentemente num dos primeiros líderes a reconhecer que seu filho tinha morrido de Aids. Por outro lado, o governo ainda não sabe quanto dinheiro vem de fora para a Aids nem tem controle sobre as ações de países e ongs estrangeiras. Fundos americanos, por exemplo, proíbem a defesa do uso do preservativo e pregam a abstinência sexual e o “retardo” das primeiras relações. As pregações soam inúteis em países como Moçambique, onde a prática sexual se inicia aos 13 anos e onde “ficar” quer dizer transar, geralmente sem proteção. Nesta nova “onda de colonização”, ongs e governos ricos, associados à elite negra do país, ignoram que Moçambique tem 14 línguas, mais de 40 dialetos e uma diversidade enorme de culturas. Em algumas regiões, ter relações com uma virgem, de preferência estranha e à força, ainda é considerado o melhor remédio para doenças venéreas. No país existem cerca de 500 médicos e 72 mil curandeiros. Boa parte da população só acredita naquilo que vê. Como o HIV não é visível, as pessoas acham que a doença é sobrenatural e por isso só os curandeiros podem curá-la. Os governantes negros e os financiadores brancos sabem disso, mas preferem ignorar.