"Não apareça aqui sem uma fotógrafa brasileira. Sem a fotógrafa, se você chegar a 100 metros de minha propriedade eu vou te despejar chumbo, seu bastardo.” Esta foi a resposta do Dr. Hunter Thompson a um pedido de entrevista feito há dois anos por ISTOÉ. Ele concordava em falar com a revista desde que o repórter fosse acompanhado por uma bela brasileira. É de duvidar que Thompson, um dos jornalistas mais importantes do século passado nos EUA, fosse mesmo alvejar o correspondente de ISTOÉ, caso resolvesse aparecer em sua cidade, Woody Creek, no Colorado. As pessoas com permissão para visitá-lo – e eram centenas – juravam que o ermitão louco era gente finíssima e amável. Mas o homem tinha muita munição em sua cabana de troncos e era famigerado por atirar contra caixas postais, latas de lixo e animais dos vizinhos. Quem seria capaz de adivinhar onde iria alojar uma dessas balas? No domingo 20, aos 67 anos, ele disparou uma delas com uma pistola 45 contra a própria cabeça. Foi encontrado morto por seu filho Juan Thompson.

Deixa, além da mulher, uma longa lista de viúvas. São jornalistas e escritores
de três gerações que foram influenciados pela coleta de dados e narrativa
de Hunter Thompson. Nos compêndios do jornalismo, ele aparece como
um dos pais do chamado New Journalism – o tipo de reportagem que busca na literatura sua inspiração e modus operandi, e que foi consagrado nos anos 60 por nomes como Gay Talese e Tom Wolf. Na verdade, Thompson foi inventor de outra criatura, que ele chamou de Gonzo Journalism – em que o repórter é invasivo, participa da história, e as regras da profissão vão para o espaço. “Não existe observador imparcial. Essa história de imparcialidade do jornalismo é vigarice fascista americana”, dizia o Rei do Gonzo.

O Gonzo, porém, não nasceu pronto. Thompson, natural do Tennessee, começou a carreira jornalística como comentarista esportivo em um jornal da Força Aérea americana. Seu estilo irreverente não agradava aos militares, mas chamou a atenção da imprensa civil. Despido da farda, este jovem boa-pinta e bom de copo foi para publicações famosas, como o semanário Time e o diário The NY Times. Entre 1963 e 1964, vagou pela América Latina, servindo como correspondente freelance no Brasil, na Colômbia e no Peru. O marco do Gonzo foi o livro Fear and loathing in Las Vegas (Ed. Random House, 1972) – traduzido no Brasil para Las Vegas na cabeça (Ed. Brasiliense, 1984). Trata-se de uma orgia de drogas e paranóia, supostamente envolvendo a cobertura de uma prova de motociclismo para a revista Sport Illustrated e que se revela como fotografia da alma americana, seus excessos e futilidades. Na verdade, Thompson foi a Las Vegas levando consigo o advogado Oscar Acosta, que representava o jornalista sindical assassinado Ruben Salazar. Tentava proteger a vida ameaçada de Acosta e,ao mesmo tempo, arrancar-lhe informações sobre o caso. O livro recebeu versão cinematográfica do diretor Terry Gilliam (1998), com o ator Johnny Depp na pele do doutor Thompson.

Depois disso, toneladas de papel e tinta foram transformadas em preciosidades jornalísticas por Hunter Thompson. Exércitos de imitadores tentaram seguir
seus passos. Todos, sem exceção, fracassaram. Os que insistem em ser Gonzo acabam virando o Bozo (o Palhaço). E o próprio Thompson, nos últimos tempos, tornou-se caricatura de si mesmo. Mas ele ainda tinha muita bala na agulha. Infelizmente, a última lhe serviu para terminar a carreira fantástica. Não com um sussurro, mas com um bang.