Além do trabalho para o cinema, o diretor italiano Franco Zeffirelli, morto no último sábado, aos 96 anos, foi um nome fundamental para a ópera da segunda metade do século 20. Suas produções, monumentais, grandiosas, em muitos casos ultrapassaram décadas: sua Turandot, de Puccini, para o Metropolitan Opera House de Nova York, está em cartaz desde 1987; sua La Bohème, também de Puccini, para o mesmo teatro, já teve mais de quatrocentas apresentações – e ambas seguem como um dos principais sucessos de público da companhia americana, garantias de casas lotadas e bilheterias polpudas.

Zeffirelli começou na ópera ainda nos anos 1950, como assistente de Lucchino Visconti, um dos primeiros mentores de Maria Callas, a quem ajudou a alçar para o estrelato. Mas o diretor logo conquistou espaço próprio dentro do gênero. Também trabalhou com Callas – e no recente documentário sobre a soprano estreado no Brasil, Callas por ela mesma, dá para ouvi-la falando sobre como o trabalho com o diretor levava em consideração a direção de atores. Também no início da carreira, ele dirigiu a soprano australiana Joan Sutherland em Lucia de Lammermoor, de Donizetti – e ela afirmava ter sido ele o responsável por reelaborar sua leitura do papel que se tornaria o grande triunfo de sua carreira, com uma exploração dos gestos e da movimentação cênica em perfeito diálogo com a música.

Zeffirelli participou, assim, de um momento importante para a história da ópera, quando as montagens se sofisticaram e ampliou-se o papel do cantor que, agora, além de uma bela voz, precisava também atuar e, por meio da atuação, revelar facetas desconhecidas das personagens preferidas do público. Não por acaso, não há grande teatro de ópera do mundo em que ele não tenha dirigido – e, no cinema, assinou versões celebradas de La Traviata e Otelo, de Verdi, e da dobradinha I Pagliacci e Cavalleria Rusticana, de Leoncavallo e Mascagni, filmadas não no palco, mas em locações e em estúdios.

Na verdade, na ópera, o nome de Zeffirelli tornou-se um símbolo que ia além de seus trabalhos. Suas produções tornaram-se referência em meio a um debate entre montagens “tradicionais” e “modernas”, as primeiras fiéis às intenções do compositor; as segundas, heresias de diretores mais preocupados com a própria reinterpretação das obras que dirigiam. O próprio Zeffirelli se reconhecia como decano do primeiro time – e, nos últimos tempos, tornou-se ainda mais radical em suas posições artísticas.

Mas esse debate hoje já não faz grande sentido (ou ao menos, não deveria fazer). E, longe dele, e perante a relativização da ideia de fidelidade ao original, que pode bem estar presente leituras um dia vistas como radicais, talvez seja possível aceitar que Zeffirelli construiu uma carreira fiel, na verdade, a um senso estético próprio que, por sua monumentalidade, misturou-se à própria percepção do que a ópera deveria ser no imaginário do público (a reação provocada pela substituição de sua versão da Tosca no Metropolitan fez o diretor da casa, Peter Gelb, correr à imprensa para dizer que o mesmo não aconteceria com suas produções de Turandot e de La Bohème).

Para um diretor preocupado em recriar com seus cenários e figurinos o contexto real da ação das óperas que dirigia, o advento da ópera no cinema nos anos 1970 e 1980 ofereceu possibilidades quase ilimitadas. Os salões parisiense da Traviata ou a atmosfera sombria de seu Otelo são prova disso, assim como o detalhismo quase obsessivo de I Pagliacci. Mas nessas produções havia também uma preocupação com a direção de atores/cantores, evidenciada pelos closes e cortes de cena, que ia além do fascínio pelos cenários reais, dominante em outros filmes do gênero, como a Tosca filmada por Gianfranco de Bosio em Roma nos anos 1980.

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Mas, com o tempo, algo se perdeu, e a auto indulgência tornou-se onipresente. Em Callas Forever, a memória de sua relação com Callas torna-se mais importante do que o retrato da artista. Na Aida de 2006 para o Teatro alla Scala de Milão, algo parecido acontece: na cena final, enquanto Aida e Radamés cantam seu dueto de morte; Amneris pede paz à alma dos amantes; e o coro ecoa o canto dos sacerdotes, os closes da câmera captando a montagem esquecem os personagens e se dedicam a mostrar detalhes dos cenários, dos figurinos, dos jogos de luz – ou seja, do próprio diretor.

O crítico Zachary Woolfe, em um artigo de 2017 no New York Times, sugere que, com o tempo, Zeffirelli começou a se concentrar mais no décor do que na ação porque, “incapaz de supervisionar toda remontagem pessoalmente, ele queria criar uma estrutura que pudesse sobreviver a qualquer elenco, qualquer apresentação, e a ele próprio”. É um bom argumento, mas sugere uma visão limitada do que a ópera pode ser quando todos os elementos em cena dialogam entre si de fato, e o aspecto teatral da ópera não é jogado para segundo plano. Algo de que, em certos momentos, o próprio Zeffirelli foi capaz de nos lembrar. As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.


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