Encontro de Ida com o Papa

Foi em um desses momentos de inspiração, daqueles que não sabemos direito de onde vêm, que a psicóloga Ida Sztamfater, 62 anos, resolveu tomar uma iniciativa inusitada e acabou ouvindo uma frase histórica. Na quarta-feira 6, Ida e sua família aguardavam a passagem do Papa Francisco pelo ponto onde estavam, na Praça São Pedro, em Roma. Era o primeiro dia da Quaresma, uma quarta-feira, data na qual tradicionalmente o Papa faz uma de suas aparições públicas e se aproxima das pessoas que ali o aguardam.  Judia, Ida é filha de Esther Brand Sztamfater, 89 anos, sobrevivente do Holocausto. Depois de abençoar seus filhos, os gêmeos Gustavo e Fábio, 11 anos, e seu marido, o médico Claudio Lottenberg, presidente do Conselho da Confederação Israelita do Brasil, Francisco se aproximou dela. Envolvida pela delicadeza do Papa, Ida disse que gostaria de dizer-lhe algo. Francisco aproximou o rosto para ouvir melhor. Ida disse, em espanhol: “Minha mãe é uma sobrevivente do Holocausto”. O Papa parou, olhou-a nos olhos, e respondeu: “Não sabe como me envergonho disto. Não sabe como me dói. É uma vergonha inexplicável.” Ida então contou que está produzindo um livro sobre como a mãe sobreviveu à perseguição nazista durante a Segunda Guerra. Francisco complementou: “Você tem que fazer isso mesmo.”

Foi a segunda vez que Ida encontrou-se com Francisco. Na primeira, também estava acompanhada por Claudio (ele já participou de três encontros com o pontífice). Ida se emociona quando relembra o momento único que teve com o Papa. “Foi como se o tempo tivesse parado”, diz. A mãe de Ida hoje mora em São Paulo. Ela é natural da Polônia, o país onde os judeus foram mais perseguidos pelo regime nazista do alemão Adolf Hitler. Mais de 3,2 milhões morreram, equivalente à metade do total de judeus que perderam a vida entre 1939 e 1945. Esther só sobreviveu porque passou um tempo escondida na casa de uma família católica e, ao longo dos anos seguintes, viveu em bosques e florestas junto com rebeldes poloneses que resistiam à ocupação alemã. Seu pesadelo começou quando tinha apenas dez anos. Esther chegou a ser baleada por um ex-amigo de sua família, que a perseguiu interessado na promessa de recompensa por matar um judeu.

É difícil saber se foi a primeira vez que o Papa falou sobre sua posição em relação ao Holocausto desta maneira tão contundente e pessoal. Francisco tem feito manifestações públicas repudiando o que aconteceu aos judeus e pede que isso não aconteça mais. Entre os Papas que vieram depois da Segunda Guerra, Francisco é o que apresenta as posições mais firmes contrárias à discriminação dos judeus.

No início do mês, o Papa determinou a abertura dos arquivos do Vaticano contendo documentos da época da Segunda Guerra. Os papéis estarão acessíveis em 2020. Francisco espera que, ao tornar os documentos acessíveis aos pesquisadores, finalmente apareça a verdade sobre como agiu a Igreja Católica durante os anos sombrios do domínio de Hitler. “A Igreja não tem medo da história”, afirmou o pontífice durante o anúncio da abertura dos arquivos. Hoje, há muita controvérsia. A Igreja é muitas vezes acusada de ter sido conivente ao silenciar diante do extermínio da população judia que acontecia sob seus olhos.

O Papa Pio XII, cujo nome de nascimento era Eugenio Pacelli, estava à frente do Vaticano durante o período da guerra. Há sobre ele diversas dúvidas. Muitos estudiosos afirmam que ele teria compactuado com Hitler ao não se posicionar claramente contrário à perseguição dos judeus. Em 1933, por exemplo, quando ainda era núncio, Pacelli assinou uma concordata com o governo alemão, já sob o comando de Adolf Hitler, garantindo liberdade religiosa católica na Alemanha e isso teria sido concedido em troca da neutralidade da Igreja em relação ao tratamento dado aos judeus pelos nazistas. No entanto, há outros especialistas que argumentam que Pio XII teria salvado milhares de judeus, inclusive orientando os conventos a abrigarem refugiados.

Os gestos de Francisco determinando a abertura dos arquivos e sua conversa tão emblemática com a brasileira Ida provam o quanto o Papa está pessoalmente empenhado em tirar de debaixo do tapete algumas das questões mais polêmicas que por séculos a Igreja preferiu ocultar. Ele faz isso também em relação à pedofilia e, agora, sobre o papel da Igreja em relação ao povo judeu.

O diálogo com a comunidade judaica sempre fez parte da trajetória de Francisco. Como cardeal arcebispo, ainda em Buenos Aires, ele criou uma sólida amizade com o rabino Abraham Skorka, com quem escreveu o livro “Sobre o céu e a terra”. Skorka foi uma das primeiras pessoas recebidas por Francisco no Vaticano. O Papa sempre entendeu que a raiz do cristianismo está no judaísmo. “A Virgem Maria, Jesus e os apóstolos eram judeus. E não foram eles que mataram Jesus, mas as autoridades do Império Romano”, afirma o padre José Bizon, professor de Teologia da PUC/SP e coordenador da Casa da Reconciliação – iniciativa que promove a relação da Igreja Católica com outras religiões, em um esforço para fazer crescer nas sociedades a tolerância e o respeito à crença alheia, seguindo os passos de Francisco.