PREJUÍZO As irmãs Francisca (à esq.) e Maria Caetano tiveram suas casas demolidas devido aos deslizamentos de terra: tristeza (Crédito:Gabriel Reis)

Meu coração ainda dói encharcado. Ainda estou afogado na dor”. Pode até parecer poesia, mas não há uma única só gota de romantismo no desabafo de José Manuel Bonfim, 64 anos. Profissão antiga a dele, a de tecelão. Moradia precária a dele, na modesta cidade paulista de Franco da Rocha, que já foi conhecida internacionalmente por ter sido considerada pela ONU uma das localidades mundiais que concentrava o mais alto consumo de bebidas alcoólicas. Segue famosa, no entanto, pelo manicômio judiciário e por suas trágicas moradias em ribanceiras que todos os anos despencam com as chuvas. Muita gente perde tudo do pouco que possui; muita gente morre; o poder público não faz absolutamente nada.

O tecelão Bonfim ainda guarda o trauma que sofreu com a morte de trinta e quatro pessoas devido às tempestades e aos deslizamentos – somente ele perdeu para as águas sete familiares. Situações como essa levaram a Confederação Nacional de Municípios (CNM) a realizar um levantamento sobre regiões perigosas. Estudo similar acaba de ser realizado pelo Centro Nacional de Monitoramento e Alertas de Desastres Naturais (Cemaden). As conclusões às quais os dois órgãos chegaram, pela primeira vez no País, são estarrecedoras: aproximadamente oito milhões de brasileiros vivem em áreas de alto risco sujeitas a desastres naturais no território nacional.

AMEAÇA José Manuel Bonfim perdeu sete parentes soterrados: sua casa corre risco (Crédito:Gabriel Reis)

São cerca de oitocentos municípios em todo o Brasil (dá uma percentagem acima de 10%), equivalendo a vinte e sete mil áreas, a maioria delas localizada nas regiões Sul, Sudeste e Nordeste. Como já se sabe, por exemplo, recentemente em Pernambuco registraram-se cento e vinte oito mortes, na Bahia vinte e sete, cinco em Minas Gerais e duzentas e trinta e três na região de Petrópolis, no Rio de Janeiro. Essa quantidade absurda de vítimas fatais torna o ano de 2022 um dos mais trágicos na história do País no que diz a respeito a eventos climáticos extremos. Pode-se argumentar, e assim o fazem a maioria dos políticos, que a culpa é da natureza. Enganação. A natureza de fato tem mudado e, prova disso, é que anda chovendo em um dia o volume pluviométrico previsto para um mês. Em se sabendo dessa realidade, o poder público tem o dever de oferecer moradias dignas para esses pingentes de gente que moram em locais de desabamentos e enchentes, porque lhes é a única opção. Os dados reais e os argumentos demagógicos, acima citados, e já bastante conhecidos, prestaram-se estatisticamente a embasar a pesquisa e o levantamento divulgados na semana passada. Uma chocante conclusão é de que houve uma majoração de 57% nos óbitos se cotejados com as mortes por igual motivo ocorridas no ano passado.

As irmãs Maria e Francisca Caetano, 52 e 48 anos respectivamente, moram também em Franco da Rocha. Relembram a terrível experiência que tiveram. “De um momento para outro, o barranco desceu”, diz Maria. Já Francisca, que era vizinha de parede, conta que a única coisa que fez foi gritar por socorro. “Os deslizamentos soterraram os meus amigos de todos os momentos”. A mesma situação de desespero observada em Franco da Rocha ocorreu em outras localidades paulistas, mas não só. A última vez em que houve tragédia semelhante foi em 1975, quando cento e sete pessoas morreram e as enchentes deixaram cidades inundadas. Franco da Rocha é, infelizmente, uma espécie de município modelo para estudos sobre os problemas de inundações e desmoronamentos. Quanto mais se coletar dados e quanto mais se estudar essas situações, como fizeram agora a Confederação Nacional de Municípios e o Centro Nacional de Monitoramento e Alertas de Desastres Naturais, mais se estará tentando fazer com que os responsáveis públicos partam para a ação. É necessário, no entanto, que a própria população afetada também exponha com veemência a sua indignação. É o que ensina a bailarina Stefani Bertolini, 27 anos e líder comunitária na cidade. “As pessoas vivem com medo de morrer, mas, ao mesmo tempo, não se posicionam porque temem ser removidas e não terem para onde ir”.