Nascido em Batatais há 66 anos e referência nas pesquisas de biotecnologia no País, Dimas Tadeu Covas formou-se na Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto da USP. Depois de um período de seis anos na capital, como diretor do Instituto Butantan, ele está de volta ao interior paulista, à frente do Hemocentro de Ribeirão, que ele mesmo montou em 1992. As recentes manchetes deram destaque a um paciente que, depois de 13 anos lutando contra o câncer e às vésperas de receber cuidados paliativos, teve remissão total em apenas um mês, com tratamento revolucionário que, no Brasil, é desenvolvido desde 2014 por equipes chefiadas por Covas.

O médico fala com entusiasmo dos avanços na terapia celular, explica como o novo processo age e suas perspectivas, demonstra sensação de dever cumprido ao ter dirigido o Butantan no duríssimo período da pandemia de Covid-19, transformando a entidade no décimo maior produtor de vacinas do mundo, e vê com bons olhos os primeiros cinco meses do Ministério da Saúde no novo governo.

É possível explicar de modo resumido o novo processo de tratamento do câncer que proporcionou remissão total a Paulo Peregrino, de 61 anos, que sofria com linfoma não Hodgkin de células B?
Normalmente o câncer é tratado por cirurgia, quimioterapia ou radioterapia, esse é o arsenal tradicional. Essa terapia é uma nova forma de tratar o câncer. E ela é revolucionária. Quando aparece um câncer, um elemento estranho, o corpo tenta reagir. Mas, normalmente, o câncer é mais esperto do que o sistema imunológico, por isso que não é fácil de enfrentar. Esse tratamento vai lá no indivíduo que tem câncer e retira as células de defesa, que são chamadas linfócitos, e, no laboratório, vai preparar essas células para reconhecerem especificamente o câncer. Você vai turbinar essas células, vai fazer isso com modificação do gene, uma alteração no DNA dessa célula. Vai colocar nessa célula um receptor específico do câncer. Ele se chama CAR-T, sigla em inglês para receptor quimérico de antígeno. Você está introduzindo esse receptor no genoma da célula de defesa do próprio indivíduo. Você passa então para uma etapa de proliferação dessas células, tudo em laboratório, produzindo milhões, milhões e milhões dessas células, muito mais do que elas existem naturalmente no indivíduo, e devolve para o corpo dele. O paciente vai receber um exército de suas próprias células, mas um exército altamente treinado, com essa tecnologia de reconhecimento, como se fosse um radar. Um treco fantástico, que vai permitir a procura do tumor, para se ligar especificamente a ele e o destruir rapidamente, talvez em duas ou três semanas. Isso é completamente diferente do que existia antes. Vivemos uma revolução na luta contra o câncer.

Esse procedimento pode agir em qualquer tipo de tumor?
Hoje existe uma corrida mundial na área científica para ampliar essa experiência obtida com leucemia e linfomas para outros tipos de câncer. A grande indústria farmacêutica, que tem muito dinheiro, investe pesadas somas para buscar o tratamento de tipos de câncer, como de mama, de estômago, de pulmão. Isso obviamente será atingido nos próximos anos. Devemos ter um arsenal de tratamentos baseados nessa tecnologia.

O tratamento de um paciente pode custar US$ 500 mil?
Esse tratamento já está disponível nos Estados Unidos. Uma companhia multinacional foi a primeira a registrar o produto, em 2017, e esse produto lá custa US$ 500 mil (R$ 2,4 milhões). E o tratamento tem mais as despesas médicas, de internação, UTI etc. Essa mesma empresa fez o registro do produto aqui no Brasil e estabeleceu seu valor na CMED, Câmara de Regulação do Mercado de Medicamentos, por cerca de R$ 2 milhões. Esse é o preço de mercado do produto. Nós fizemos aqui esse desenvolvimento que é integralmente nacional, tratamos o primeiro paciente em 2019, e desde lá já cuidamos de 13 pacientes. E, em 2021, quando eu ainda estava no Butantan, foi feito um acordo entre USP, Butantan e Hemocentro de Ribeirão Preto para implantar unidades de produção. São duas, uma em São Paulo e outra unidade em Ribeirão. As duas juntas têm capacidade de produção de 300 a 500 tratamentos por ano. No Hemocentro já está em funcionamento uma fábrica, certificada, e é nela que pretendemos produzir o material que será destinado ao SUS. Como é uma produção nacional, com patente e processo nacional, os custos serão muito inferiores aos custos do mercado, pelo menos 50% ou 60% mais baratos. Qual o desafio deste momento? É exatamente dar escala a essa produção, obter o registro da Anvisa, para que isso vire efetivamente um produto, e financiamento do Ministério da Saúde para a aquisição e incorporação do tratamento ao SUS.

Quando o senhor fala em valor do produto, está se referindo ao material que será usado em um único paciente?
Sim, é um tratamento personalizado, tem que começar a partir das células do próprio paciente.

Não é possível usar o material de um paciente em outro?
Neste momento não, mas nós estamos trabalhando numa variação exatamente para permitir isso que você perguntou. Nós queremos que este seja um produto de prateleira. Para estar disponível às pessoas que tenham a indicação médica para o tratamento. Eu acho que deve acontecer rapidamente. Eu propus esse projeto em 2014, inédito no Brasil e na América Latina. São raros os países da Europa com essa tecnologia.

Algumas pessoas têm muita gratidão ao SUS, enquanto outras reclamam de demora de atendimento, de falta de médicos e remédios. Por que essa discrepância?
O SUS é um sistema extremamente complexo. O Brasil é o único país do mundo que definiu a saúde da população como dever do Estado. Está inclusive no texto constitucional. É um sistema enorme e hierarquizado. O Ministério da Saúde, em um nível federal, controla o funcionamento, inclusive do ponto de vista financeiro. Você tem uma instância intermediária, que é o Estado, que também contribui financeiramente, e você tem o executor, que é o município. A complicação é que o dinheiro não está no município. Então, o gestor que faz o atendimento, que recebe o paciente, que precisa lidar com ocupação de hospital e urgências, ele anda com o pires na mão, porque o dinheiro que vem dos governos federal e estadual normalmente não é suficiente. E aí os municípios comprometem grande parte de seus orçamentos próprios para fazer frente às dificuldades. Daí as diferenças e as iniquidades. Um município com uma situação econômica forte terá um bom atendimento do SUS. Num que não tem comprometimento nem recursos, certamente o atendimento não será bom.

Paulo Peregrino havia esgotado os tratamentos tradicionais e agora teve remissão total do linfoma não Rodgkin de células B. Já cuidamos de 13 pacientes, o primeiro deles em 2019 (Crédito:Tiago Queiroz)

A população reclama de consultas de oncologia marcadas dali a cinco meses. O tratamento oncológico é praticamente uma corrida contra o tempo, não?
Aí você toca em outro ponto delicado do SUS. Ele é um sistema fantástico para atendimento primário. Ali, na consulta de um paciente que procura atendimento porque tem febre, uma dor. Muitas vezes, cerca de 80%, os casos se resolvem nesse nível de atendimento. Mas existem as doenças complexas. A oncologia é uma das áreas mais complexas. E existe deficiência no Brasil em termos de diagnóstico e de tratamento. O câncer é hoje a segunda causa de morte no Brasil. À medida que o tempo passa e a população envelhece, vai se transformar na primeira causa. Por ser complexo, poucos lugares têm os recursos necessários, com equipamento de ressonância e patologistas, e aí forma-se a fila. E vai demorando dois meses, três meses. Há o problema da distância, o paciente não tem transporte. Quando o atendimento se faz, às vezes é tarde para o estágio da doença. No Brasil, muitas pessoas chegam ao diagnóstico já em fase de metástase. Falta uma política mais consistente de atendimento ao paciente oncológico.

Como o sr. avalia o desempenho do Ministério da Saúde em 2023?
Não querendo ironizar, mas o Ministério da Saúde saiu do quartel, né? No governo anterior, conduzido por militares, houve um fechamento em relação a questões fundamentais da Saúde. Com a mudança do governo, há pessoas hoje no Ministério que já passaram por lá, professores universitários de grande expressão, pessoas envolvidas na questão da saúde pública. Há uma descompressão, antes era uma situação tensa e agora a gente consegue dialogar com o Ministério com muita facilidade, com gente que entende os problemas e tem sensibilidade social. Uma mudança bem positiva. A ministra Nísia Trindade teve uma atuação fantástica durante a pandemia e é uma pessoa muito preparada para exercer essa função.

De volta a Ribeirão, o que o sr. pode agregar da experiência de seis anos à frente do Butantan?
Ribeirão Preto sempre foi polo de pesquisa biomédica da primeira ordem. Especialmente na minha área, que é hematologia, hemoterapia, terapia celular, oncologia. Sempre agreguei à minha atividade de pesquisa um foco na aplicação, na biotecnologia. Procurei desenvolver com meus alunos, com meus colegas de pesquisa, projetos que tivessem impacto populacional. Fui chamado para ser diretor do Butantan porque já tinha toda essa experiência. Eu tive a grata satisfação de comandar uma das maiores revoluções na biotecnologia nacional. Novas fábricas, investimentos, capacidade produtiva para novos produtos. Volto com mais experiência, principalmente na área de gestão de grandes volumes. Conseguimos transformar o Butantan no décimo maior produtor de vacinas do mundo.

É a imagem de um campo de batalha. O exército de linfócitos com DNA alterado foi colocado ali e liquidou o inimigo, em um tempo muito curto (Crédito:Divulgação)

Episódios como as mortes de Pelé e Rita Lee acentuam a discussão sobre os cuidados paliativos. O tema merece mais atenção, principalmente na comunicação com o público, para que todos entendam o que pode ser feito?
Você tem toda a razão. Cuidados paliativos fazem parte da melhoria de qualidade de vida de pacientes com doenças graves. Quando a pessoa recebe um diagnóstico não favorável, aí faz um primeiro tratamento, faz um segundo e pode chegar a uma situação na qual não há muito mais o que possa ser feito do ponto de vista dos remédios. Então ela passa para uma fase em que precisa ter todo o apoio, preservar a qualidade de vida, manter a doença sob controle, na medida do possível, e ter dignidade nesse tratamento. É uma parte importante da atenção médica e agora o mundo está despertando para isso. Antes a medicina parava na medida em que tinha recursos para continuar. Mandava o paciente para casa, dizia que não tinha muito o que fazer, pedia que o paciente procurasse viver da melhor forma possível por mais algum tempo. Hoje esse conceito mudou. São fundamentais os recursos de reabilitação, de hospital-dia, de aporte psicológico. A medicina tem compromisso com a pessoa do começo ao fim, não pode parar no meio.