Em conversa com Arthur Leal, jornalista do O GLOBO, Luciana dos Santos Nogueira, viúva do músico Evaldo, que foi fuzilado por militares há dois anos, contou que não retornou para sua casa desde a morte do companheiro e também falou sobre a rotina que leva com o filho.

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Evaldo Rosa morreu em 2019, após ser morto por nove dos mais de 80 tiros de fuzil disparados por militares no Rio de Janeiro. Na ocasião, o catador de material reciclado Luciano Macedo também morreu. Ele foi atingido pelos disparos enquanto tentava ajudar a família.

No dia do crime, Evaldo estava se locomovendo para um chá de um bebê e contava com a companhia da esposa Luciana, do filho Davi, uma amiga, e o sogro, Sérgio Gonçalves de Araújo, que também foi ferido na mesma operação.

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“A minha vida, de dois anos para cá, mudou totalmente. Eu vivia na minha casa própria em Marechal Hermes com o meu marido Evaldo que, na família, sempre chamamos carinhosamente de Duda, e também com o nosso filho, Davi. Desde que tudo aconteceu, naquele dia 7 de abril de 2019, eu nunca mais voltei. Só tirei minhas coisas de lá. E nós até precisávamos voltar, porque hoje vivo pagando aluguel numa casa que não é minha. Eu queria muito tentar voltar, mas não dá. Nós ainda não conseguimos. Acho que, na verdade, sinto que nunca mais conseguiremos ser as mesmas pessoas”, disse.

“Às vezes eu paro para pensar e, refletindo, percebo que não consigo até hoje entender o que aconteceu naquele dia. Não tinha porquê aquela quantidade de tiros, não havia motivo para que alguém fizesse aquilo conosco. E, depois de tudo, vai ficando um vazio, uma tristeza. Em meio a tudo isso, também preciso ser forte, porque, agora, tenho que ser pai e mãe para o Davi, a quem tenho dedicado amor em dobro e tratamento psicológico contínuo. Hoje, ele tem 9 anos. Aliás, foi agora, no domingo, que o notei um tanto quanto triste e o encontrei chorando no canto da casa. Ele só me disse: ‘Você sabe porque eu estou chorando'”, revelou.

“É um trauma. Algo que também nos visita todos os dias e vai ficar para o resto da vida. O Davi precisou mudar de escola para ter uma nova rotina e teve medo quando aqueles homens deixaram a cadeia para responder em liberdade. Eu sou técnica de enfermagem e antes me desdobrava para trabalhar em dois empregos, mas acabei demitida… Exatamente porque não estava conseguindo conciliar minhas rotinas, cuidar do meu filho e ainda lidar com tudo o que estava acontecendo. Hoje, graças a Deus, trabalho numa clínica em Botafogo, mas ainda tenho medo quando vou à rua”, contou.

Luciana também revelou que sente pânico toda vez que se depara com um policial militar. “Entro em pânico toda vez que vejo militares. São pessoas que eu sei não têm nada a ver com o que aconteceu, mas, infelizmente, acabo vendo com outros olhos. Aqueles homens que estavam lá naquele dia deveriam estar nos defendendo, e não foi o que aconteceu”, comentou.

“Confesso que, até hoje, ainda não assisti aos vídeos que os moradores fizeram dos disparos contra o nosso carro. O coração acelera. Não me sinto preparada. Mas, quando se fala em 80 tiros, ou 257 tiros, que seja, eu não sei… Logo, lembro nitidamente daquela quantidade de cápsulas douradas pelo chão. Era uma quantidade muito grande. Aquilo me assustou muito”, relembrou.

“É um momento que eu revivo todos os dias, a todo o tempo. Desde que acordo até o momento de dormir. Sou uma sobrevivente de 257 tiros. Sobrevivi a tudo aquilo. Não tenho como esquecer, como não reviver, não lembrar sempre. Eu lembro de absolutamente tudo daquele dia, o pior da minha vida”, relatou.

A viúva alegou que sente uma mistura de medo e ansiedade ao pensar no julgamento dos culpados. “Fiquei sabendo na semana passada que o julgamento adiado, que seria no dia 7 de abril, seria remarcado agora para o próximo dia 7 de julho. Desde então, o que estou sentindo é uma mistura de medo, ansiedade… tudo junto. O medo é de o julgamento ser adiado de novo, mas também é medo da impunidade, de que a justiça não seja feita, que eles tentem mais uma vez banalizar o caso do meu esposo. A ansiedade, ao contrário, é para que tudo se resolva e eles sejam punidos”, falou.

“Eu preciso acreditar na justiça, e que a defesa não vá repetir o que eu li nas considerações finais, de que o Evaldo passou por barricadas. Um absurdo, uma tentativa que chega a ser ridícula de manchar a imagem do meu esposo”, continuou.

A mãe de Davi pede justiça na resolução do caso de Evaldo. “Destruíram minha família, meu lar. Então, preciso ter fé em Deus. Não pode ser só mais um caso. Eu clamo muito por justiça, que eles se coloquem por pelo menos um segundo no meu lugar. Eu preciso que a minha vida ande. Hoje ela está estagnada. Ainda estou presa no meu passado, porque ele continua sendo o meu presente”, disse.

“Quem nos conhece sabe que nós somos pessoas do bem, somos trabalhadores. Meu marido morreu inocente. Assassinaram o meu esposo e não deram nenhum tipo de ajuda. Me tiraram meu melhor amigo, uma pessoa cheia de vida, do bem, com tanta garra e força de viver. Quem era para nos proteger, nos assassinou”, concluiu Luciana.


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