A Argentina estava bem posicionada para assumir a Presidência do conselho executivo da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco) contra um polêmico concorrente, mas a vitória do ultraliberal Javier Milei dificulta suas chances para esse estratégico posto, que cabe à América Latina.

A poucos dias da votação, marcada para sexta-feira (24), a atual embaixadora argentina, Marcela Losardo, tem como única rival para este cargo, com o posto de chefe de Estado, Vera El-Khoury Lacoeuilhe, candidata de Santa Lúcia e ex-candidata a diretora-geral da Unesco pelo… Líbano.

Poucas vezes, uma votação agitou tanto essa agência da ONU com sede em Paris. É que a nova diretoria-executiva ficará encarregada de propor, no próximo ano, o sucessor, ou sucessora, da atual diretora-geral, a francesa Audrey Azoulay, a partir de 2025.

No centro do imbróglio, está a ilha de Santa Lúcia, uma nação caribenha de quase 200.000 habitantes que, na Unesco, é representada por Gilbert Chagoury, um bilionário nigeriano-libanês, contra quem pesam várias condenações.

Esse colaborador próximo do ex-ditador nigeriano Sani Abacha foi condenado em 2000, em Genebra, a pagar uma multa de um milhão de francos suíços (cerca de US$ 1,1 milhão, ou R$ 5,3 milhões na cotação atual) em um caso de lavagem de dinheiro. E, em 2021, a Justiça americana impôs-lhe uma multa de US$ 1,8 milhão (R$ 8,7 milhões na cotação atual) por financiamento ilegal de um partido político.

Segundo duas fontes de segurança, Chagoury enriqueceu com o petróleo.

Para um diplomata acreditado na Unesco, o bilionário e também filantropo “comprou” o cargo de embaixador de Santa Lúcia pela “imunidade diplomática”.

Seu braço direito na delegação de Santa Lúcia é El-Khoury Lacoeuilh. Apesar dos repetidos pedidos, a AFP não conseguiu falar com a franco-libanesa, que, em 2017, apresentava-se como uma “mulher de consenso”, “comprometida com os ideais da ONU”.

– “Mercenários” –

A Unesco autoriza cada Estado-Membro a nomear o embaixador de sua escolha, mesmo que não seja cidadão, ou diplomata nacional. Esta prática de “mercenários” – nas palavras de uma embaixadora à AFP – é usada por meia dúzia de Estados, especialmente os caribenhos.

Mas, agora que a posição do próximo presidente do conselho-executivo corresponde à América Latina e ao Caribe para o período 2023-2025, muitos países da região manifestaram seu mal-estar.

El-Khoury Lacoeuilhe “não está subordinada ao governo de Santa Lúcia nem à Unesco, mas apenas a Gilbert Chagoury”, afirmou a embaixadora, que pediu anonimato, para quem “essa cadeia de comando deve ser motivo de preocupação”.

A eleição acontece por voto secreto entre os 58 membros do conselho executivo, que inclui Argentina, Brasil, Chile, México, Cuba, Haiti e Santa Lúcia, entre outros. A Espanha conseguiu sua reeleição até 2027, na semana passada, neste órgão.

A Presidência do conselho deve caber a um de seus membros e, nesse sentido, a candidatura de Marcela Losardo, ex-ministra da Justiça e Direitos Humanos do atual presidente argentino, Alberto Fernández, tranquilizou muitas delegações – até estourar a notícia do resultado da eleição no país.

“Agora não sabemos, com a vitória de Milei, o que vai acontecer. [Losardo] é uma excelente candidata e, como embaixadora, está sempre em busca de consensos”, disse à AFP seu homólogo espanhol, José Manuel Rodríguez Uribes.

– ‘Candidatura abalada’ –

No domingo (19), a Argentina elegeu como presidente o opositor de extrema direita Milei, cujas posições antiaborto e de questionamento das causas da mudança climática divergem frontalmente das que são defendidas pela agência da ONU para Educação, Ciência e Cultura.

“A eleição de Milei aumentou as possibilidades de vitória de Santa Lúcia”, disse um diplomata da Unesco, que teme o impacto na “reputação” da agência se El-Khoury Lacoeuilhe vencer.

“A candidatura argentina está abalada”, acrescentou um embaixador europeu.

Embora a chegada de um novo governo costume implicar mudanças em posições diplomáticas importantes, sendo a Unesco normalmente uma das consideradas de prestígio, não se sabe o que Milei fará quando chegar ao poder, em 10 de dezembro.

Marcela Losardo garantiu à AFP que não quer renunciar.

“Continuo sendo a solução e vou ganhar”, declarou ela, para quem “uma mudança de governo não significa que um candidato não tenha capacidades pessoais” para o cargo.

Se for escolhida como presidente do conselho, continuará na função até 2025, mesmo que o futuro governo argentino a destitua do cargo de embaixadora. Nesse caso, ela perderia seus rendimentos como diplomata em Paris, uma vez que este cargo não é remunerado, explicou um diplomata da Unesco.

Com a votação prestes a acontecer, três diplomatas disseram à AFP que esperam a retirada da candidatura argentina e que apareça um novo nome, no último minuto, possivelmente do Brasil, para evitar essa delicada eleição.

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