Muito da fama da obra de Fiódor Dostoiévski (1821-1881) se deve à figura do russo instável que inventava narrativas próximas do horror e do absurdo, nas quais Deus entra como vilão. Os estudos dostoievskianos ajudaram na construção do mito do autor perturbado, até porque são pesquisas que não dialogam entre si nem com a história. O resultado só pode ser a leitura parcial da obra — 14 romances, centenas de contos e incontáveis diários, artigos e folhetins críticos — publicada em 35 anos de carreira. Dostoiévski parecia maior que seus intérpretes.

O professor americano Joseph Frank (1918-2013) se dedicou a corrigir essas distorções e a dar ao escritor a posição universal que ocupa de fato na literatura. Em suas pesquisas, Frank demonstrou que o fundamento das suas narrativas resulta do modo como absorveu ou repeliu as ideias de sua época, marcada pelas lutas políticas e visões de mundo conflitantes. O homem que surge do trabalho é menos um messias endiabrado que um escritor único, capaz de “sentir os pensamentos” — e de sofrer por eles. Para superar abordagens limitadoras, Frank planejou um volume que não se resumisse a uma narrativa biográfica. “Uma forma de definir a originalidade de Dostoiévski é ver nele essa capacidade de integrar o pessoal com as grandes questões sociais, políticas e culturais da época”, escreve.

“É a tendência inata de Dostoiévski de ‘sentir o pensamento’ que dá às suas melhores obras uma marca especial” Joseph Frank, crítico literário (Crédito:Divulgação)

O livro se ampliou para cinco volumes, publicados entre 1976 e 2002, num total de 2,5 mil páginas. Trata-se de um marco do método de abarcar a vida, a obra e o tempo de um artista. A versão integral foi publicada no Brasil pela Universidade de São Paulo no início do século.

Em 2010, para tirá-la do nicho acadêmico, a Princeton University Press encomendou a Frank um volume compactado, agora lançado pela Companhia das Letras. A nova versão tem 1.180 páginas.

Deus em dúvida
O achado de Frank foi extrair, das fontes primárias, uma interpretação coesa e não apenas episódios fragmentários de uma “alma asfixiada”, como Dostoiévski se definiu quando ficou preso na Sibéria, entre 1850 e 1854, acusado de integrar uma sociedade secreta que conspirava contra a monarquia. O período de provação fez com que ele sofresse o primeiro ataque epiléptico e regenerasse as convicções cristãs.

Nasceu em Moscou de uma família da pequena nobreza lituana e teve uma educação rígida. Formou-se na academia militar. Influenciado pelo romantismo, lançou seu primeiro romance, “Gente Pobre”, em 1846. Nele, manifestou repulsa pela servidão da Rússia imperial. De volta à vida civil em 1860, escreveu romances de sucesso, como “Crime e Castigo” (1866). Foi quando desenvolveu uma capacidade singular de dramatizar as ideias. Continuaria a se envolver nos debates políticos que dividiam a sociedade russa entre nobres, rebeldes e servos. Acima das lutas, vestiu “o manto do profeta”, como diz Frank, e pregou a conciliação entre os homens em nome de Cristo. Questionou a bondade de Deus em seu último romance, “Os Irmãos Karamázov”, lançado no início de janeiro de 1881. Morreria no dia 28 daquele mês em São Petersburgo, de hemorragia pulmonar.

Um mês depois, o tsar Alexandre II era assassinado.

O atentado arrastou o país ao limiar do caos. Como símbolo de conciliação, o nome de Dostoiévski passou a ser evocado. “Um dos sonhos de Dostoiévski era que sua obra promovesse a unidade da cultura russa”, diz Frank.

“Se nisso não teve sucesso em vida, alcançou o objetivo com sua morte.” Os conflitos cessaram. Por pouco tempo.

De iconoclasta a conciliador