“Após revirar a casa de Lula, a Federal grudou um microfone no sofá para gravar secretamente as conversas do casal” Fernando Morais, autor de “Lula” (Crédito:CHIP SOMODEVILLA)

Apesar da longa carreira política e dos 76 anos do biografado, grande parte do primeiro volume da biografia “Lula”, de Fernando Morais, é dedicada a um episódio que durou pouco mais de 580 dias: a prisão do ex-presidente, decretada pelo então juiz Sergio Moro em 5 de abril de 2018. O caso é recheado de detalhes, do calibre das armas dos policiais que o acompanharam à planta da cela de 25 metros quadrados, na sede da Polícia Federal, em Curitiba. Há menções a diálogos com advogados e simpatizantes, e até o número exato de cartas que Lula recebeu na prisão: 35 mil, cerca de 60 por dia. Não há, no entanto, um parágrafo sequer sobre a Lava Jato, mensalão, petrolão ou outros motivos que levaram o ex-presidente à prisão.

Famoso pelo bom texto e apuração impecável em biografias como “Olga” e “Chatô”, Morais é um jornalista de talento incontestável. Afirmou ter feito 170 horas de entrevistas com Lula, além de burilar a obra durante dez anos. Tudo isso leva os leitores a uma única conclusão: os escândalos de corrupção foram deixados de fora de forma proposital. Quem perde com isso é o próprio livro, seus leitores e, por consequência, o Brasil.

A biografia traz pelo menos duas acusações inéditas, ambas com supostas ilegalidades cometidas no processo de prisão de Lula. A primeira é que, durante uma operação de busca e apreensão na casa do petista, policiais federais instalaram sob o sofá da sala de visitas um microfone. Ilegal, a escuta teria sido descoberta e desativada pela segurança do petista. A segunda é relativa ao uso pela PF de câmeras secretas para monitorar o movimento na sede do Sindicato dos Metalúrgicos do ABC, onde Lula estava pouco antes de se entregar. É curioso que ambos os casos sejam apresentados na biografia como reais, mas que não constem nas peças de defesa do ex-presidente. Depois de abordar a prisão recente, a biografia faz um flashback e volta à primeira vez em que Lula foi preso, em abril de 1980. Como presidente do Sindicato dos Metalúrgicos, havia se tornado alvo do regime militar após liderar uma greve que paralisou 140 mil trabalhadores na região do ABC.

BIOGRAFIA “Lula – Vol. 1”, de Fernando Morais: parcialidade desnecessária (Crédito:Divulgação)

Só então o livro conta a origem humilde de Lula – nascido em Caetés, no sertão pernambucano, migrou para o sudeste em um pau de arara em 1951, aos sete anos, junto da mãe e mais sete irmãos. Arranjou um emprego após ser diplomado como torneiro mecânico pelo Senai, mas logo enfrentou uma tragédia: a primeira mulher, Lourdes, morreu em decorrência de uma gravidez de risco, assim como o bebê. Fundou o PT em 1980, partido pelo qual disputou o governo do Estado de São Paulo dois anos depois e perdeu feio para Franco Montoro. Inclinado a largar a política, mudou de ideia após uma viagem a Cuba, quando foi aconselhado pelo próprio Fidel Castro de que deveria manter a luta. Voltou ao Brasil e foi eleito deputado federal, a maior votação da história até então.

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A vida de Lula já teria elementos suficientes para ser interessante sem que o autor insistisse no tom messiânico. Quem ler o livro acreditará que Lula é um super- herói do bem, e não um ser complexo e multidimensional, com defeitos e virtudes. Uma visão maniqueísta sobre um personagem tão popular empobrece a discussão política e torna a obra uma peça de propaganda calculada para coincidir com a campanha eleitoral de 2022. O livro termina de forma curiosa, com um apêndice sobre a cobertura da mídia sobre Lula. O levantamento mostra que, na maioria das vezes, as matérias eram negativas. É a maior prova de que o livro tem um objetivo político: servir de contraponto à imprensa crítica. O volume 2, que abordará seus dois mandatos como presidente e o governo de sua sucessora, Dilma Rousseff, sairá apenas em 2023. Infelizmente, a eleição presidencial já terá acontecido.