Foram dias em que o País viveu sob o signo do caos, com cenas assustadoras como só se vê no cinema-catástrofe: pessoas brigando por comida nos mercados, ladrões roubando gasolina até de ambulâncias e muita gente preferindo ficar em casa a enfrentar o clima de salve-se quem puder que tomou conta das cidades. Ao menos quatro pessoas morreram em decorrência da baderna. A primeira vítima foi um homem que faleceu depois de ser atropelado durante um protesto na rodovia MG-010, em Minas Gerais, na quinta-feira 24. Na quarta-feira 30, o caminhoneiro José Batistella foi morto em Vilhena, Rondônia, após ser atingido por uma pedra quando tentou furar um bloqueio. O suspeito pelo ataque foi preso. Outros dois motoristas morreram ao longo da paralisação, vítimas de infarto. A greve dos caminhoneiros, que teve início na segunda-feira 21, deixou o Brasil sem combustível, sem alimentos, sem transporte público, sem insumos hospitalares, sem aulas. Portos não funcionaram, inclusive o de Santos, maior da América Latina , vários aeroportos cancelaram voos e terminais rodoviários refizeram as escalas de viagens porque não havia como tirar os ônibus do lugar. O que a paralisação provocou, porém, não foi apenas o desabastecimento e a insegurança. Ela ensejou o oportunismo de setores radicais que se infiltraram no movimento para espalhar o terror.

Quando finalmente os combustíveis começaram a chegar aos postos, a partir da quarta-feira e ainda de maneira muito lenta, filas imensas se formaram com motoristas angustiados e ansiosos para retomar a vida. O alívio de poder encher o tanque parecia trazer a normalidade de volta. No entanto, sobraram várias perguntas. A qual vida e a qual País retornaremos? Os impactos nas esferas social, política e econômica foram imensos, a maioria ainda impossível de ser estimada e que só chegará à luz de forma precisa depois de passar pela análise da história. Mas o que já é possível ser mensurado perturba. Do ponto de vista econômico, o País todo perdeu. Uma estimativa da soma dos prejuízos aponta para a cifra astronômica de R$ 75 bilhões. A principal reivindicação dos caminhoneiros que iniciaram a paralisação era a baixa no preço do diesel. Ainda na primeira semana de greve, lideranças dos caminhoneiros conseguiram arrancar do governo federal não só o compromisso de que o preço do diesel seria reduzido como o de que a Petrobrás só reajustaria os preços mensalmente. Estabeleceu-se uma trégua de quinze dias. Ela não durou sequer um. Nenhum caminhão deixou os bloqueios e o desabastecimento se agravou. Três dias depois, uma nova reunião de emergência realizada em Brasília selou um acordo que parecia ter encerrado de vez a paralisação. O preço do diesel foi reduzido em 0,46 centavos, os motoristas ficaram isentos do pagamento de pedágio dos eixos suspensos quando trafegam vazios e todas as outras reivindicações foram aceitas por um governo acuado. Também não bastou. Os bloqueios persistiram por mais quatro dias, perdendo adesão lentamente, até praticamente se esgotarem na quinta-feira 31.

Enquanto isso, o Brasil agonizou. A Petrobrás foi a primeira grande vítima. O impacto imediato foi ser derrubada do primeiro para o quarto lugar na lista de empresas mais valiosas do Brasil. A companhia retomou a liderança dias depois, mas um grande estrago havia sido feito. Os preços das ações da empresa despencaram por pregões seguidos e ela chegou a perder R$ 126 bilhões em valor de mercado. A estatal petrolífera não está sozinha no rombo fenomenal causado, em parte, pela própria estratégia de recuperação adotada há um ano por seu atual presidente, Pedro Parente. Só no setor agropecuário a conta das perdas chega a R$ 10 bilhões. Não havia como escoar a produção. Animais morreram por falta de insumos (foram cerca de 70 milhões de aves mortas) e alimentos, jogados fora. Estima-se que 300 milhões de litros de leite tenham sido descartados. No comércio, foram R$ 27 bilhões de perdas, basicamente porque as pessoas só saíram de casa quando realmente precisaram. Era preciso economizar o pouco de combustível para usar em situações imprescindíveis.

ANSEIO Houve contínuas manifestações pedindo a entrada dos militares (Crédito:Fábio Motta)

Nos hospitais, a situação foi se tornando cada dia mais dramática. A primeira providência tomada pela maioria dos estabelecimentos foi suspender procedimentos e exames que não fossem de emergência. A Federação Nacional dos Hospitais foi obrigada a fazer um apelo público aos caminhoneiros para que permitissem a passagem de veículos carregando insumos vitais, como oxigênio. Em clínicas de hemodiálise, cada dia a mais de paralisação foi um pesadelo. “Começamos a ficar muito preocupados, achando que os insumos chegariam no dia seguinte. E eles não chegavam”, conta o nefrologista Luis de Miranda, dono de uma clínica de hemodiálise de Criciúma, em Santa Catarina, onde tratamentos foram redesenhados para que menos materiais fossem usados. Os estoques nos bancos de sangue desabaram. “Estamos apelando para que a população não deixe de doar. A situação é crítica”, afirmou Dante Langhi, diretor da Hemorrede de São Paulo, no início da semana passada.

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Infiltrados

Tão assustador quanto ver sumir itens essenciais à sobrevivência foi a percepção de que o governo havia perdido qualquer possibilidade de controle de um movimento que fugia ao comando inclusive daqueles que se intitulavam seus comandantes. O alerta soou depois que nada mudou após a primeira reunião entre representantes de algumas das entidades associadas aos caminhoneiros e os ministros Eduardo Guardia, Carlos Marun, Valter Casemiro e Eliseu Padilha. Depois do segundo encontro, no domingo, a celebração de um acordo divulgado em rede nacional pelo presidente Michel Temer e, mesmo assim, a permanência da paralisação por dias a fio, ficou evidente que o monstro andava sozinho.

A estruturação da greve fugiu aos padrões que normalmente norteiam movimentos do tipo. Primeiro porque houve também participação das empresas transportadoras, o que configura locaute. A Polícia Federal abriu 54 inquéritos para apurar a questão. Depois, porque ela ganhou força graças à comunicação por redes sociais nas quais nem sempre o criador do grupo estava de fato ligado às entidades que se apresentaram como representantes dos grevistas. Isso fez com que a grande maioria dos caminhoneiros parados nas estradas obedecesse a lideranças de origens obscuras, que agiam por meio de uma rede de comunicação própria e afastada de qualquer comando central. Até a quarta-feira 30, a polícia havia prendido sete infiltrados — nenhum era caminhoneiro.

Ao longo dos três primeiros dias da semana passada, chegou-se a um ponto grotesco. José da Fonseca Lopes, presidente da Associação Brasileira dos Caminhoneiros e um dos interlocutores que visitaram o Palácio do Planalto, admitiu que havia gente infiltrada no movimento. Não se tratava mais da greve de uma categoria. Passou a se tratar de um movimento político insuflado por indivíduos que nada tinham a ver com os motoristas. Eles se apropriaram da mobilização e fizeram dela moeda de troca por bandeiras contrárias às regras da democracia. Um dos pleitos passou a ser a saída do presidente Michel Temer. Um dos expoentes do movimento foi André Janones, ex-candidato a prefeito de Ituiutaba, em Minas Gerais, pelo PSC, e filiado ao PT entre 2003 e 2012. Assim que pegou carona na mobilização dos caminhoneiros, Janones ganhou milhares de seguidores no Facebook e seus vídeos pedindo a continuidade da greve enquanto o presidente Michel Temer não saísse do cargo se espalharam. Nas redes, Janones se define como “mineiro, cristão, advogado e jornalista.” Incita seus 700 mil seguidores a “quebrar o sistema.”

Houve mais dois grupos atuantes, usando de força para impedir que a maioria dos motoristas retomasse o trabalho: os que pediam intervenção militar e os que defendiam a libertação do ex-presidente Luis Inácio Lula da Silva. Segundo líderes das entidades tradicionalmente representantes dos caminhoneiros, os três movimentos alheios à categoria representavam de 10% a 15% do comando da paralisação. Fora os que haviam se infiltrado, virando líderes do dia para a noite, houve apoio em manifestações públicas realizadas em pontos das estradas que estavam obstruídos e em outros locais das cidades. Em São Paulo e no Rio de Janeiro, viu-se com frequência grupos segurando cartazes pedindo a volta dos militares ao poder. Ao primeiro olhar, é difícil entender como três grupos com aspirações tão distintas podem ter se vinculado a um mesmo movimento. Cada um a seu modo, eles tentaram se apropriar de uma mobilização que, no princípio, contou com o apoio da população. Segundo pesquisa do DataFolha, 87% da população defendeu a paralisação. De alguma maneira, ela catalisou a insatisfação popular e o cansaço diante de uma recuperação econômica lenta depois de uma recessão que produziu os 13,4 milhões de desempregados existentes hoje no Brasil. Foi somente depois do agravamento do desabastecimento, da dificuldade para conseguir um ônibus ou atendimento médico, por exemplo, que manifestações mais críticas foram ouvidas.

Além dos cifrões

Outras categorias como motoristas de vans, motoboys e estivadores também promoveram protestos oportunistas. O maior exemplo foi a paralisação chamada pela Federação Única dos Petroleiros (FUP) para a quarta-feira 30 e suspensa no dia seguinte. O movimento havia nascido mês antes, logo após a prisão do ex-presidente Lula, com o objetivo de ser uma forma de resistência. Dias depois da prisão de Lula em Curitiba, documentos da própria entidade deixam o objetivo claro, tratando o ex-presidente como o “primeiro preso político desde 1964” e afirmando que o único caminho de protesto seria uma greve.

Passado o caos, a tendência é o País voltar à normalidade, porém ainda mais embalado pelo radicalismo de opiniões e encontrando dificuldade para acelerar o crescimento. Do ponto de vista político, o governo de Michel Temer se mostrou frágil. “Os oportunistas só conseguiram se infiltrar por causa da fragilidade da autoridade do presidente”, analisa o cientista político Rodrigo Prando, do Instituto Mackenzie. No aspecto econômico, a previsão de crescimento do PIB, antes de 3% nesse ano, caiu para 2%. Mas o impacto futuro desses onze dias vai além dos cifrões. “Há perdas indiretas, como falta de credibilidade do governo, insegurança jurídica e imprevisibilidade regulatória”, diz Cláudio Frischtak, presidente da Inter.B Consultoria. São problemas que o Brasil conhece muito bem.

Oportunismo político

Na terça-feira 29, o ministro da Secretaria de Governo, Carlos Marun, telefonou para o líder do PT na Câmara, Paulo Pimenta (RS). Pediu que, em nome do País, o PT intercedesse para que os caminhoneiros retornassem e se evitasse a paralisação dos petroleiros. A resposta foi não. “Ligou para a pessoa errada”, disse, depois, o líder do PT. Explicitava-se ali uma inusitada e irresponsável aliança entre a esquerda que grita “Fora Temer” e “Lula livre” e a direita que pede “intervenção militar”. O conservador militar Jair Bolsonaro (PSL), em uma de suas postagens no twitter, escreveu: “O governo, de forma covarde, trabalha para colocar na conta dos caminhoneiros a responsabilidade pelos futuros prejuízos causados pela paralisação”.


Bolsonaro assina o projeto de lei que prevê punição de até quatro anos de cadeia para quem obstruir vias públicas, como fizeram os caminhoneiros para dificultar a passagem dos colegas que não queriam aderir. Como se vende como o candidato da “ordem”, nada melhor do que incitar a desordem para que, em outubro, ele surja na figura de salvador, um messias que colocará tudo no lugar, em meio ao caos.

Os petistas, assim como Bolsonaro, apostam no “quanto pior, melhor” por duas razões: consolidar a narrativa de que Lula e Dilma foram vítimas de um golpe político-jurídico e alimentar a tese de que Lula seria o único capaz de reunificar o País. Para quem hoje não tem nada em que se agarrar, qualquer coisa é lucro.

Na mesma esteira de oportunismo político, não poderiam faltar declarações da presidente nacional do PT, senadora Gleisi Hoffmann (PR). Ela conseguiu a proeza de dizer que, nos governos petistas, não houve prejuízos à Petrobras, mesmo com a política de intervenção na formação dos preços dos combustíveis, feita “a bem do cidadão”, segundo reforçou. Em 13 anos do PT no poder, foram 16 reajustes, lembrou ela. Enquanto isso, desde 2016, no início da gestão Michel Temer, houve 229 correções. O que Gleisi não contou é que o saqueamento dos cofres da Petrobras quase quebrou a empresa. (Ary Filgueira)


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