Encerrou-se na última quarta-feira a gravidez (o drama físico e psíquico talvez durem a vida inteira) da garota de 11 anos que estava grávida em decorrência de estupro — ela foi brutalmente violada, ela foi injustamente mal informada em um hospital e ela foi criminosamente humilhada por uma juíza. Após tanta dor no corpo e na emoção, a menina conseguiu exercer o direito ao aborto.

“Você acha que o pai do bebê concordaria com a entrega da criança à adoção?”

Dessa forma cruel, a juíza Joana quis saber da garota violentada o que ela imaginava sobre a vontade de seu próprio estuprador em relação ao destino do feto

A JUÍZA E A EX-MINISTRA Joana (acima) e Damares: na mesma direção em questões envolvendo aborto (Crédito:Fátima Meira)

Eis o seu calvário que comoveu o País:A juíza Joana Ribeiro Zimmer, de Santa Catarina, tem o direito de ser, pessoalmente, a favor ou contra o aborto. Como magistrada, no entanto, ela é obrigada a agir com neutralidade — e, ainda que seja contrária a interrupção da gravidez por motivo religioso, deve respeitar a laicidade do Estado, estabelecida no Brasil há mais de um século pelo decreto 119/A, de autoria do jurista Rui Barbosa. Além disso, para juízas e juízes são vedadas manifestações de crueldade em oitivas. Mas Joana desprezou todos esses fundamentos republicanos. Ela tentou induzir, em audiência no dia 9 de maio na comarca catarinense de Tijucas, uma garotinha de 11 anos, grávida devido a estupro, a dar continuidade à gestação. Em atitude que pode ser aquilatada como tortura psicológica, perguntou à menina: “você acha que o pai do bebê concordaria com a entrega da criança à adoção?”. Dessa forma cruel, quis saber da garota violentada o que ela imaginava sobre a vontade de seu próprio estuprador em relação ao destino do feto. Tenebrosa indagação. Joana machuca a alma da gente; imagina o quanto machucou a da vítima. “O ato da magistrada não condiz com o cargo que ocupa”, diz Roselle Soglio, integrante da Associação Portuguesa de Ciências Forenses, na cidade do Porto, professora de Direito Processual Penal, Criminalística e Medicina Legal.

“A magistrada cometeu crime de abuso de autoridade, tortura, sequestro e cárcere privado” Roselle Soglio, advogada da Associação Portuguesa de Ciências Forenses, na cidade do Porto (Crédito:Julia Moraes)

A violação sexual deu-se, possivelmente, por alguém que morava na casa da agredida, quando ela contava 10 anos de idade. Fez 11 e estava na 22ª semana de gravidez na data da audiência. A juíza aproveitou a efeméride e indagou-lhe se queria escolher o nome do bebê como “presente de aniversário”. Em nenhum instante a magistrada demonstrou empatia ou consideração com a dor psíquica de uma pré-adolescente brutalizada sexualmente. A lei permite o aborto a qualquer tempo gestacional em caso de estupro (o limite é o início do trabalho de parto e não o peso do feto, como disse Joana), e abortar era o desejo da criança e de sua mãe. Façamos, então, um corte naquilo que ocorreu no interrogatório porque o calvário da agredida começara pouco antes, no momento em que a mãe a levou ao Hospital Universitário de Florianópolis com o objetivo de realizar o procedimento legal. Os médicos recusaram-se a fazê-lo, alegando que só poderia ser concretizado com o aval da Justiça, uma vez que a gestação ultrapassara a 20ª semana. “O hospital foi negligente. Casos como esse não precisam de autorização judicial”, explica Roselle.

A vítima e sua genitora decidiram, então, bater às portas da Justiça. Qualquer pessoa espera que elas se abram com acolhimento e temperança. Não houve isso. Mãe e filha, solitárias, somente vivenciaram desalento. Pessoas simples e crianças têm a sabedoria de definir rapidamente dor emocional. Elas definiram: “nó no peito”. Voltemos, nesse ponto da história, à desatinada audiência. A promotora Mirela Dutra Alberton pediu medida protetiva, sob a alegação de que a vítima corria risco no ambiente familiar. Mas havia também outra motivação: institucionalizada em um abrigo, a garotinha não poderia abortar. Por decisão de instância superior, somente na última terça-feira ela pôde retornar a sua casa, pôde retornar ao aconchego materno, pôde retornar ao consolo dos bichos de pelúcia aos quais dá vida em sua imaginação de 11 anos de idade. Também a juíza não ficou onde estava: viu-se transferida da comarca de Tijucas para a de Brusque e (sente-se e respire fundo para ler as duas próximas palavras) — foi promovida.

“A magistrada cometeu abuso de autoridade e tortura, além dos crimes de cárcere privado e sequestro ao mandar a criança para um abrigo e afastá-la da mãe”, afirma Roselle. “E a promotora também tem culpa porque estava na audiência para defender a vítima, e não para compactuar com a juíza”. Para o advogado Henderson Fürst, presidente da Comissão Especial de Bioética da OAB- SP, “o consentimento da menina para seguir com a gestação não poderia ser induzido nem influenciado”. Mais: Fürst afirma que “juíza e promotora alteraram a narrativa determinada pela legislação para assumir uma narrativa moralizante”. Diz-se que cada cabeça é uma sentença, mas há pelo menos duas cabeças com sentenças idênticas. Em 2020, a ex-ministra Damares Alves posicionou-se contrária ao desejo de abortar vindo de uma garota de 10 anos, que engravidara quando violada pelo tio. A vítima abortou e Damares perdeu em sua tese desumana, da mesma forma que Joana já está derrotada: na quarta-feira 22, sob recomendação do MPF, o hospital que orientou mal a garota catarinense teve de realizar o aborto. O “nó no peito” começou a desatar.

UMA (MAIS UMA) TRISTE REALIDADE BRASILEIRA
Com informações reunidas em 2020, o mais recente Anuário Brasileiro de Segurança Pública aponta:

• Crianças com idade de até 13 anos equivalem a 60,6% das vítimas de estupros no País
• 28,9% das vítimas possuem de 10 a 13 anos; 20,5% têm de 5 a 9 anos e 11,3% contam de 0 a 4 anos
• Meninas de até 14 anos formam a maioria entre as vítimas do crime de estupro. A maioria dessas adolescentes não consegue se valer do direito de abortar legalmente devido às dificuldades burocráticas para chegar ao Poder Judiciário
• Toda e qualquer forma de conjunção carnal com menores de 14 anos é considerada pela legislação
como “estupro de vulnerável”

Divulgação

Colaboraram Fernando Lavieri e Gabriela Rölke