Três décadas atrás, o vídeo feito por uma testemunha de um espancamento selvagem de um motorista negro por policiais dos Estados Unidos levou os agentes à justiça.
Mas suas absolvições um ano depois pelo ataque a Rodney King incendiaram Los Angeles, onde a raiva contra a brutalidade policial se espalhou pela cidade, com tumultos que deixaram dezenas de mortos e causaram US$ 1 bilhão em prejuízos.
Nesta sexta-feira, os Estados Unidos ficaram em choque com outro vídeo trágico de um ataque brutal de cinco policiais de Memphis contra um homem negro de 29 anos.
Em 10 de janeiro, três dias depois de ser espancado, Tyre Nichols faleceu como consequência dos ferimentos que sofreu.
Os cinco policiais, todos negros, foram demitidos e acusados de homicídio em segundo grau, entre outras acusações.
A relativa rapidez com que as autoridades agiram contrasta com a reação oficial após o espancamento de Rodney King.
Mas ambos os casos ganharam notoriedade por causa da existência de material gráfico provando a brutalidade policial, disse Jack Glaser, especialista em preconceito racial policial da Universidade da Califórnia, em Berkeley.
“Antes de Rodney King, não havia muita gente com câmeras de vídeo, e o fato de alguém ter filmado o ocorrido chamou a atenção nacional”, explicou à AFP.
“Agora, isso ficou exponencialmente mais evidente com todo mundo constantemente carregando smartphones, além de policiais com câmeras corporais”, acrescentou.
– Prestação de contas –
A existência de imagens, capturadas pela polícia ou por cidadãos, ajuda nos esforços para que os agentes de segurança sejam responsabilizados.
“Quando falta (a prova por imagem), há uma tendência de obstrução e solidariedade entre os policiais para proteger seus empregos.”
Patrick Oliver, ex-chefe policial em Cleveland, Ohio, que atualmente lidera um programa de justiça criminal na Universidade Cedarville, concorda que a relativa rapidez com que as autoridades agiram neste último caso de violência policial é fruto da existência de provas concretas e chocantes.
“É estranho” agirem tão rapidamente contra os agentes policiais, disse à AFP. “O Departamento de Polícia de Memphis basicamente acredita que há evidências suficientes para justificar suas acusações administrativas.”
A decisão de divulgar o vídeo publicamente tão rapidamente foi estratégica, uma tentativa de aliviar a pressão popular inicial, disse.
“O vídeo foi liberado assim que os agentes foram demitidos e as acusações foram anunciadas”.
“As pessoas que estão justificadamente indignadas com este episódio saberão que o departamento de polícia agiu contra os cinco policiais e que o procurador do estado já agiu criminalmente”.
– “A ponta do iceberg” –
Lora Dene King, filha de Rodney King e que tinha sete anos em 1991, disse que a morte de Nichols faz parte de uma longa linha de exemplos de brutalidade policial que se estendia desde o espancamento de seu pai, passando pelo famoso “não consigo respirar” repetido onze vezes por Eric Garner em 2014, quando foi sufocado até a morte, até o assassinato de George Floyd em 2020 em Minneapolis.
“Toda essa situação me deixa doente, não há motivo para que ele não esteja vivo”, afirmou Lora King, referindo-se a Nichols.
“Logo será só mais um caso e seguiremos em frente com nossas vidas, e isso acontecerá novamente.”
Para Glaser, houve uma mudança cultural com o reconhecimento da prevalência da violência policial contra homens negros.
“Os chefes da polícia entendem cada vez mais que não podem simplesmente ignorar os casos e que serão responsabilizados”, disse.
Em sua opinião, no entanto, episódios como da morte de Tyre Nichols são apenas “a ponta do iceberg”, que ganham notoriedade por causa da existência do vídeo e pela brutalidade das agressões.
“Mas há muitos, muitos casos de uso excessivo de força não letal, de ações desnecessárias”, afirmou.
“Este é o tipo de situação que indica quão sérios são os preconceitos e quão selvagem é a mentalidade policial”.