Victor Biglione só morou em Copacabana por nove anos, dos oito aos dezessete, mas, “freudianamente falando”, se sente parte do bairro até hoje. “É o meu lugar, o lugar que me faz feliz no mundo. Aqui acontece de tudo. Adoro esse clima felliniano”, diz o guitarrista, agora com 58 anos, em frente ao Beco das Garrafas, no coração do bairro. É lá que ele faz show nesta terça, 26, lançando o CD Mercosul, o primeiro autoral em 20 anos, e o 30.º trabalho em três décadas de carreira solo. “É emocionante lançar um disco dessa importância aqui, porque lutei pela revitalização do Beco.”

O diminuto palco do Bottle’s, uma das casas do recém-renovado trecho da Rua Duvivier, vai receber Biglione e banda – Luiz Alves (contrabaixo) e Roberto “Alemão” Marques (bateria e percussões) – e a bailarina de flamenco Vera Alejandra, sua irmã, que fará uma performance. Eles vão executar o repertório eclético de Mercosul, que pôs no liquidificador o mangue beat pernambucano, o tango de Buenos Aires, os ritmos afro-brasileiros, os ruídos da floresta, os sons do Atacama e os sabores caribenhos e andinos, numa homenagem do guitarrista, que compôs tudo sozinho, à riqueza musical da porção Sul das Américas. “Há muito tempo, eu tinha essa ideia de juntar referências do Brasil, onde moro desde criança, e de países da América Latina, que conheço bem. É um sopro de vida num momento de tantas notícias ruins no continente, que está uma tragédia só.”

Produzido por ele e pelo baterista Roberto “Alemão” Marques, Mercosul tem também um toque de psicodelia. Foi pensado de forma cinematográfica (Biglione é compositor de trilhas). Agora, ele entra para o rol de 23 shows que o guitarrista apresenta no Brasil e em festivais no exterior. “Tenho um power trio, com Luiz Alves e Robertinho Silva (baterista), um com Marcel Powell, de dois violões, um de jazz, um de tango, um tributo a Jimi Hendrix, um com Wagner Tiso, de piano e guitarra, um com Jards Macalé, o do Som Imaginário (banda que integrou no início dos anos 1970)…”, enumera. “Gosto de música palpável, de qualidade. Não tem como responder se prefiro Jimi Hendrix ou João Gilberto, Gal Costa ou Janis Joplin.”

Descendente de romenos, judeus ucranianos e de italianos, nascido no bairro boêmio e musical de San Telmo, em Buenos Aires, ele veio para o Brasil aos cinco anos, com os pais e a irmã. Era 1964. Os pais, comunistas, queriam escapar da ditadura de lá e encontraram a daqui, àquela época, ainda em banho-maria.

Os Bigliones se instalaram primeiro na Consolação, em São Paulo, para depois se transferirem para Copacabana, onde o menino, que começou a tocar violão aos 12 anos e a estudar guitarra aos 18, “embebeu-se de bossa nova, embriagou-se das belezas do Rio e tomou porres de música brasileira”, como descreveu o pesquisador musical Ricardo Cravo Alvin ao apresentar o perfil biográfico e artístico do músico.

O livro, lançado em 2014 e intitulado O guitarrista Victor Biglione e a MPB, o define como “o músico estrangeiro com a maior contribuição em gravações e shows para a MPB”. Entre os anos 1980 e 1990, passada a temporada em que substituiu Armandinho na segunda formação do grupo A Cor do Som, Biglione gravou com todo os grandes, Chico Buarque, Gilberto Gil, Gal Costa, Maria Bethânia, Djavan. Desde 1995 que ele não acompanha mais ninguém.

O guitarrista ainda espera conseguir lançar o disco Victor Biglione e Cássia Eller in blues: If six was nine, gravado em 1991, com faixas como (I Ain’t Got) Nothing But the Blues, de Duke Ellington, If six was nine (Hendrix) e Got to get you into my life (John Lennon/Paul McCartney), e nunca comercializado. Na época, Cássia (1962-2001) teria concordado com a gravadora de que um disco de blues poderia atrapalhar sua carreira iniciante, por rotulá-la como cantora do gênero.

Ele brigou pelo lançamento do produto, que é da gravadora Universal, mas diz que desistiu dele: “Não aguento mais essa história, são 25 anos falando disso. É um disco espetacular, e eu adoraria que os saudosos fãs da Cássia tivessem a oportunidade de ouvir. Não é para o meu ego, eu me satisfaço com meus discos”. A Universal só vai lançar se a família de Cássia autorizar, e esta não tem planos nesse sentido.

As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.