A tradição de abrir a Assembleia Geral das Organizações das Nações Unidas (ONU) é uma honra concedida ao Brasil desde o início. Mas ela se transformou num vexame internacional para o País na 76ª edição do evento, que aconteceu em Nova York. Ao invés de exibir dados positivos e críveis sobre o Brasil, Bolsonaro contou inverdades sobre a pandemia e a defesa do meio ambiente, contradizendo sua própria prática amplamente conhecida no exterior. A consequência será um isolamento ainda maior do seu governo. Não foi o único vexame. Os chefes de Estado de todas as delegações chegaram aos EUA devidamente vacinados contra a Covid e apresentaram os comprovantes de imunização. A única exceção foi o presidente brasileiro. Bolsonaro insistiu na tese de que tem anticorpos contra a doença para os interlocutores e manteve o discurso negacionista frente à pandemia na própria tribuna da ONU, para espanto das outras delegações e da imprensa mundial.

IMPROVISO Bolsonaro come pizza na calçada porque não foi vacinado (Crédito:Divulgação)

Antes mesmo de chegar a Nova York, o brasileiro provocou polêmica. O prefeito da cidade, o democrata Bill de Blasio, foi enfático e disse que sem se vacinar o mandatário nem precisaria ir até a cidade. As regras são rígidas na Big Apple e sem o cartão de vacinação há muitos limites. Bolsonaro teve que entrar no hotel onde estava hospedado pela porta dos fundos. Quando quis comer pizza, foi obrigado a ficar na calçada e depois improvisou um puxadinho na área externa para saborear um rodízio numa churrascaria de origem brasileira.

Diferentemente da recepção costumeira aos chefes de Estado brasileiros, Bolsonaro não foi recebido pelo presidente Joe Biden. Mas o ex-capitão conseguiu um encontro com premiê britânico. Também aí se saiu mal. Boris Johnson elogiou a vacina AstraZeneca, desenvolvida pela Universidade de Oxford. A vacina é produzida no Brasil em parceria com a Fiocruz. “É uma ótima vacina. Obrigado, pessoal. Tomem vacinas da AstraZeneca.” Johnson disse que havia tomado a vacina “duas vezes”. Na conversa, o premiê aponta para Bolsonaro e perguntou se o brasileiro também tinha tomado. O mandatário respondeu “ainda não”, constrangido, balançando o dedo. Foi o suficiente para se transformar numa grande piada para os tabloides britânicos.

Johnson estava certo em indagar sobre a vacinação. Na reunião estava presente o ministro da Saúde, Marcelo Queiroga, que depois confirmou estar contaminado com o coronavírus. Queiroga ficará em quarentena por 14 dias em Nova York, tudo pago pelo contribuinte. Antes ele deu um espetáculo de má educação. Utilizou o dedo médio para fazer gestos obscenos a manifestantes que protestavam contra o governo brasileiro. O senador Renan Calheiros (MDB), relator da CPI da Covid, disse que o “gesto obsceno de Queiroga não deixa dúvidas: ele já foi abduzido pelas trevas. É um caso perdido”. O deputado Eduardo Bolsonaro também foi vaiado dentro da loja da Apple na 5ª Avenida. Os manifestantes que encontraram o deputado gritavam “fora Bolsonaro” e diziam que o filho do presidente é uma “vergonha para o Brasil”.

A performance da comitiva foi lamentável, segundo especialistas. A professora de Relações Internacionais Carolina Pavese lembra que a Assembleia da ONU é o único lugar em que os países menos hegemônicos têm o mesmo espaço das grandes potências. Nesse palco, o presidente “se firmou como um pária, numa situação absolutamente vexatória que vai reforçar a má imagem que se tem do Brasil, como um País que abandonou uma diplomacia que já foi motivo de orgulho”, afirmou.

Discurso fanático

O discurso do presidente foi avalizado por ele e seu filho, o deputado Eduardo. O conteúdo serve à base fanática do bolsonarismo e não fortalece o País como um interlocutor internacional. Ao contrário, trata-se de um estelionato político que incrimina Bolsonaro. Apesar de o incentivo a remédios sem comprovação científica estar na mira da CPI da Covid, Bolsonaro manteve a defesa do tratamento precoce. Contraditoriamente, o discurso enfatizou a vacinação, que ele mesmo desprezou em várias oportunidades. Bolsonaro disse que defendeu “o combate ao vírus”. É mais uma contradição, pois é sabido que ele foi contrário às medidas sanitárias que poderiam diminuir as mortes, quase 600 mil. Ele ainda tentou atribuir o problema da inflação às medidas restritivas, o que nenhum economista sério defende. Sobre o desemprego, omitiu que seu governo é responsável pela pior média dos últimos 30 anos.

A Assembleia seria uma boa ocasião para o Brasil se retratar dos descuidos com o meio ambiente, mas isso não aconteceu. Esse é um dos principais problemas de imagem do País. Reforçando esse fato, na Times Square, um caminhão exibiu um luminoso com a frase: “Amazônia ou Bolsonaro”. Cartazes pela cidade também apontaram o presidente como “criminoso do clima”. Na ONU, Bolsonaro desinformou sobre os investimentos na área. Afirmou que dobrou os recursos para o setor, quando na verdade os reduziu em 35%. A omissão sobre a demarcação de terras indígenas ficou escondida sob a alegação de que 600 mil nativos vivem em liberdade. A ex-senadora Marina Silva reagiu indignada: “ele mentiu sobre povos indígenas, cuidados à Amazônia, meio ambiente e sucessos na economia”.

Baseado em mentiras
Fala do presidente apresentou um Brasil fictício ao mundo

1. Divulgou que dobrou o investimento na fiscalização do meio ambiente, mas diminuiu em 35% os recursos
2. Disse que combateu a pandemia e incentivou a vacinação. No entanto, defendeu uso de remédios ineficientes, como a cloroquina, e atacou as medidas de isolamento social
3. Afirmou que acabou com a corrupção. Contudo, a sua família é investigada nas rachadinhas e a CPI da Covid aponta corrupção na compra das vacinas

Sobre o sensível tema dos Direitos Humanos, o presidente abordou três temas controversos: racismo, refugiados e democracia. Defendeu o combate ao racismo, mas o próprio presidente da Fundação Palmares, Sérgio Camargo, já chegou a pedir o fim do movimento negro. Sobre os refugiados venezuelanos que entraram no País durante a pandemia clandestinamente, Bolsonaro disse que o Brasil “sempre acolheu os os cidadãos do país vizinho”. Por fim, disse que milhões foram às ruas para defender o governo e a pauta democrática no Sete de Setembro. Trata-se de mais uma falácia. Não foram milhões. Em São Paulo, o número estimado foi de 125 mil participantes na Avenida Paulista. A pauta dos bolsonaristas também não é democrática. O fechamento do STF e a implantação de um governo militar sem eleições é um pedido recorrente do mandatário e dos seus súditos. Os opositores, ao contrário, pedem democracia.

Contudo, é no tema da corrupção que a desfaçatez ficou mais escancarada. Ele disse que o Brasil está “há dois anos e oito meses sem qualquer caso concreto de corrupção”. Além das rachadinhas em que a própria família é investigada, a CPI da Covid apura corrupção ativa na compra das vacinas e todas as medidas de combate a corrupção anunciadas pelo governo federal foram travadas pelo mandatário, que aparelhou a Polícia Federal para resguardar seus amigos. Ao fim do discurso, o púlpito em que Bolsonaro falou foi higienizado e o microfone foi trocado para que Joe Biden ocupasse o lugar, conforme divulgou o Wall Street Journal. Bolsonaro tinha uma coletiva de imprensa marcada, mas antecipou a volta ao Brasil e cancelou o compromisso. Depois de tanta vergonha, o retorno repentino foi a melhor notícia. Em seguida, o presidente precisou ficar recolhido por ter mantido contato com Queiroga.