É curioso constatar que, em um país com uma natureza tão exuberante como o Brasil, dois de seus maiores poetas tenham ido buscar inspiração nas pedras. No caso do mineiro Carlos Drummond de Andrade, “a pedra no meio do caminho” era um obstáculo, um acontecimento inesquecível que marcaria para sempre suas retinas tão fatigadas. Para o pernambucano João Cabral de Melo Neto, a pedra não foi um entrave, muito pelo contrário: foi um ponto de partida e um ponto de chegada. Seu primeiro livro foi “Pedra do Sono”; o último, “A Educação pela Pedra”. A atração do poeta pernambucano por tal metáfora vai muito além do significado literal. Há, sim, uma atração por sua frieza sólida e inerte, mas há principalmente uma admiração pela coisa indestrutível que resiste à corrosão e à morte.

“A poesia de João Cabral é anti-lírica, não aceita temas abordados por outros poetas, como as rosas, a lua. A rosa dele é a pedra, a lua dele é a pedra”, afirma Antonio Carlos Secchin, crítico, poeta e membro da Academia Brasileira de Letras. Secchin é o organizador de “Poesia Completa”, obra definitiva de João Cabral de Melo Neto que sai pela Alfaguara em comemoração ao centenário do escritor e diplomata, celebrado em 2020. Além de textos póstumos, seu conteúdo torna esse livro um verdadeiro tesouro da literatura brasileira: há 53 poemas inéditos.

Poema inédito

AINDA A RETÓRICA

Talvez retórica: na voz
que não sabe ser em voz baixa,
e que por isso mais explode
do que fala, se é que ela fala;

retórica ao avesso, ela ensina
senão o falar, essa explosão
com que a voz, como qualquer gás,
se expressa ao ser forte a pressão;

caprichosa, com a água morta
da vida sul-americana,
que explode sem quandos nem ondes,
ou onde parece mais mansa.
João Cabral de Melo Neto, “Poesia Completa”

Arqueologia

A responsável por esse resgate é a Edneia Ribeiro, professora que fazia pesquisas para sua tese no arquivo da Fundação Casa de Rui Barbosa quando encontrou o material. De acordo com Secchin, embora os poemas não estivessem datados, o material provavelmente foi produzido na década de 1980, época do lançamento do livro “Agrestes”. “São poemas de grande qualidade. Acho que o poeta não os publicou porque já estava menos empolgado com a produção literária e o problema da cegueira se agravava. Mas são poemas prontos, em forma definitiva”, diz Secchin. Além da perda da visão, outro problema que o afetou foi a dor de cabeça, tratada em diversos poemas, dentre eles no texto “Num Monumento à Aspirina”.

Lançamento
Poesia completa
João Cabral de Melo Neto
Alfaguara | 896 págs.
Preço: R$ 154 / R$ 49 (e-book)

“Poesia Completa” começa com os primeiros poemas, de 1937, e segue com clássicos como “O cão sem plumas”, “Museu de Tudo”, “Sevilha Andando”, “A Educação pela Pedra”. Em toda a obra, seu rigor estético preciso e duro é quase uma obsessão, assim como a crítica social. Não se rende à emoção e se alimenta da razão e da lógica. É daí que vem sua originalidade e relevância mundial. João Cabral se definia como um escultor, um artista que corta a pedra até que a escultura surja de dentro dela. “Há grandes poetas e escritores que se inserem numa linha de tradição na literatura. Outros se rebelam, como Machado de Assis e Guimarães Rosa. João Cabral é um deles. O poeta não escreve apenas um novo capítulo, ele cria uma nova gramática inteira”, afirma Secchin. “Ao contrário de outros grandes nomes, como Drummond ou Cecília Meirelles, ele obriga o leitor a repensar o próprio conceito de poesia.”

O livro também traz sua obra mais conhecida, “Morte e Vida Severina”, um texto pelo qual o poeta chegou a demonstrar certo desprezo. “Ele ficava enciumado com o sucesso que a obra alcançou em outras plataformas, com as adaptações para o teatro, cinema e TV. Mas é um dos livros de poesia mais publicados no País até hoje, com mais de 100 edições”, diz Secchin. A obra ficou famosa em 1966, após a vitória da versão teatral no Festival de Nancy, na França, com letras musicadas pelo jovem Chico Buarque.

Secchin também lança em 2020 o livro “João Cabral de Ponta a Ponta”, estudo completo que traz, entre outras raridades, o texto da última palestra do poeta em 1993, na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). João Cabral faleceu em 1999, aos 79 anos. Assim como as pedras que lhe inspiraram, as suas palavras são indestrutíveis.