Para a maioria das pessoas, a ideia de dedicar toda uma carreira à pesquisa dos mais íntimos pormenores da vida de um estranho pode parecer uma obsessão sem sentido. Mas é justamente essa curiosidade que beira à obsessão que move o trabalho dos biógrafos, escritores especializados em retratar personagens da sociedade. Nessa área, um bom profissional deve ter “senso de detetive, olhar de antropólogo e espírito de arqueólogo”, segundo Lira Neto. O autor lança A Arte da Biografia – Como Escrever Histórias de Vida, onde narra sua experiência e o processo criativo por trás de obras sobre Getúlio Vargas, Padre Cícero, Castello Branco e Maysa, entre outros. De forma simultânea, chega às livrarias A Vida por Escrito – Ciência e Arte da Biografia, de Ruy Castro, outro grande nome do gênero no País.

É interessante ressaltar que ambos os livros vão muito além do conceito didático a que se propõem. Apesar de terem como público-alvo os interessados em se aventurar pela arte da literatura não-ficcional, são interessantes para os leitores de forma em geral, principalmente nos trechos em que explicam os detalhes minuciosos de suas pesquisas, que mais se assemelham ao trabalho de investigadores policiais. A ideia partiu da vontade de compartilhar o conteúdo dos cursos que os autores ministram sobre o tema.

Ruy Castro opta por um formato mais voltado para o manual. Além de dicas sobre as diferenças estilísticas entre livro-reportagem e perfil biográfico, por exemplo, explica como conduzir uma entrevista e como fugir das armadilhas que entrevistados famosos podem tentar aplicar. As partes mais interessantes, porém, são os bastidores da criação das biografias que ele escreveu: Nelson Rodrigues, Garrincha, Carmen Miranda, mas também histórias sobre a bossa nova (em Chega de Saudade) e casos do samba-canção (A Noite do Meu Bem). Apesar do subtítulo, Ciência e Arte da Biografia, Ruy Castro se aprofunda mais no primeiro item: “Ao contrário da ciência, a arte é difícil de ser aprendida. Por que alguns nascem para a música e outros para a pintura? Todo biógrafo deveria ser um grande leitor, mas também um consumidor de música, teatro, cinema. Os recursos dessas formas de arte podem ser transpostos para a escrita. O mais importante, no entanto, é o respeito pela informação.” Esse tipo de técnica permitiu, por exemplo, que ele desmentisse mitos sobre o jogador Garrincha, em Estrela Solitária. O craque não chamava seus adversários de “João”, nem questionava se o técnico havia “combinado com os russos” antes de entrar em campo. Ambas as histórias haviam sido atribuídas a ele por jornalistas amigos, que estimulavam o folclore ao redor de Garrincha. Castro dedicou três anos de sua vida ao livro e, com rigor histórico e disciplina, desmentiu esses e outros mitos – e foi assim em todos os seus projetos.

PERSONAGENS O jogador Garrincha, cuja trajetória foi dissecada por Ruy Castro, e a cantora Maysa, biografada por Lira Neto: segredos que agora são contados (Crédito:Divulgação)

Lira Neto destaca uma característica que, a seu ver, é importante para uma boa biografia: a descoberta da voz narrativa adequada a levar o leitor ao universo do seu homenageado. “Há manuais que ensinam que, independentemente do tema abordado, o texto é sempre do autor. Discordo. Cada biógrafo deve usar recursos narrativos que levem o leitor para dentro da cena escrita, por meio da linguagem, de jargões ou do próprio vocabulário da época. Para a biografia de José de Alencar, Neto pesquisou dicionários do século 19 para descobrir o tom da época. “É uma forma de passar ao leitor, de forma sutil, maneiras de tornar a narrativa mais colorida”. A comparação com detetive, para o autor, é pertinente. “A pesquisa sobre o passado pressupõe um olhar detetivesco, que percorre trilhas e segue pistas. O biógrafo acaba tendo uma intimidade com o personagem maior até do que as pessoas que o conheceram pessoalmente”.

ENTREVISTA
Ruy Castro e Lira Neto

“Biógrafos são gigolôs da memória alheia”

Apenas pessoas famosas merecem biografias? Ou um cidadão comum pode render um bom livro?
Ruy Castro: Todas as pessoas merecem uma biografia, mesmo que aparentemente opacas e caretas. Todo mundo tem uma vida secreta que, se contada, deixaria sua própria família de cabelo em pé.
Lira Neto: Os personagens secundários são muito úteis para entendermos a sociedade. A “microhistória”, que consiste em tentar entender um período por meio da vida de anônimos, é importantíssima. Essa idéia de que só os famosos são biografáveis é do século 19, do positivismo. É uma visão arcaica: as biografias não são para louvar os grandes homens, mas para descontruí-los e explicar como foram fabricadas suas mitologias pessoais.

Sua vida daria uma boa biografia? Por quê?
Ruy Castro: Todo bom biógrafo é alguém que deveria render também uma boa biografia. Para ser um bom biógrafo não se pode ter passado a vida no gabinete. É preciso ter vivido a madrugada, que é quando se passam as coisas, ter amado e traído, ter sido amado e traído, perseguido pelo marido de uma namorada, tido filhos, sofrido uma doença grave, passado por uns dez empregos, visto uma ou duas revoluções. Modestamente, já fiz tudo isso. Mas, para ser coerente, uma biografia minha, só por cima do meu cadáver.
Lira Neto: Que nada! Ver sua vida dissecada por um estranho será sempre um incômodo. Espero que ninguém faça a minha. A biografia não perdoa, ela tem de mostrar os acertos, mas também os erros. Tomara que ninguém se atreva.

A qual personagem não dedicaria uma biografia, nem por um milhão de dólares? Por quê?
Ruy Castro: Jamais biografaria qualquer pessoa viva, porque sua história ainda não terminou. Os mortos recentes também não rendem, porque as fontes ainda estão traumatizadas e não tem visão imparcial — Pelé, agora, não teria um único defeito. Um biógrafo não usa a própria memória, mas a memória dos outros. Com todo o respeito, é um gigolô da memória alheia.
Lira Neto: Por esse dinheiro, eu escreveria a vida de qualquer um. Não tenho esse purismo. Imagine biografar Jair Bolsonaro, por exemplo, que maravilha! Explicar como um sujeito torpe e nefasto como ele conseguiu crescer no cenário nacional. Tomara que encontre um biógrafo à altura de sua baixeza.