Abusando da metáfora, o jogo do bicho se pode comparar a uma espécie de sudário brasileiro. Uma sequência sobrenatural de imagens que vive no imaginário de todos e é mais antiga que qualquer ser humano ainda vivo. Essa impressão coletiva de desejos e possibilidades, vive entre o sonho e a sorte, a formalidade e a malandragem, a tecnologia e a tradição, o povo e a elite, a lei e o samba, a devoção e o carnaval.

Conhece a letra? Ganhei 500 contos, não vou mais trabalhar, você dê toda a roupa velha aos pobres e a mobília podemos quebrar. Isto é pra já, vamos quebrar, Etelvina, vai ter outra lua-de-mel. Lembra da música? Foi Kid Moringueira, rei do samba de breque e o último dos malandros — como Alexandre Augusto Gonçalves chamou a Antônio Moreira da Silva — que escreveu a canção que serve para bem traduzir a transa quase religiosa com que o povo aposta, em cada posto de gasolina e banca de jornal, na interpretação dos seus sonhos.

O jogo do bicho é uma instituição antiga. Começou sendo rifa de zoológico há 130 anos destinada a ajudar os animais do Zoo do Rio de Janeiro e sobreviveu e prosperou entre ditaduras e democracias convivendo com todos os governos do Brasil. Mas nem a mais antiga e capilar rede de comunicação brasileira — presente em todas a cidades do Brasil — consegue escapar à necessidade de transparência e, após três décadas de discussão, vê a Câmara dos Deputados finalmente aprovar uma regulamentação que legalizará o jogo do bicho.

Continua o Moringueira. Você vai ser madame, vai morar no Palace Hotel, eu vou comprar um nome não sei onde; de Marquês Moringueira, de Visconde, e um professor de francês — mon amour… Eu vou trocar seu nome pra madame Pompadour. Mas a verdade é que lei ainda não está valendo. Ela precisa de aprovação pelo Senado federal e da posterior validação do presidente da República. Só então entrará em vigor e até lá muito pode acontecer.

No entanto, se tudo der certo, o jogo do bicho vai passar de ilegal a regulamentado e a imensa massa monetária que hoje se aposta informalmente em milhares de locais em todo o País vai começar a entrar no sistema. Permitindo que o Estado arrecade novas receitas fiscais e se gerem diversos postos de trabalho diretos e indiretos em inúmeros segmentos da economia. Com a possível aprovação senatorial e sanção presidencial, estará em vigor a denominada “Lei do Jogo”, a qual regulamentará a prática de jogos de habilidade e de azar, em troca do recolhimento de valores aos cofres estatais mediante o preenchimento de determinados requisitos.

E quando o patrocinador do escrete já puder pagar imposto no Brasil, haverá mais razões para sorrir e menos sonhos dependerão do tempo que o povo gasta esperando pela sorte numa fila de calçada. Saideira! Mas de repente, de repenguente, Etelvina me chamou, Está na hora do batente. Disse: acorda Vargolino, Mete os peitos pelos fundos, Que na frente tem gente. Foi (é) um sonho, minha gente!