O musical “Clara Nunes – A Tal Guerreira” estreou em São Paulo há pouco mais de uma semana e a repercussão em torno dele tem sido grande, não só pela emoção que causa no público do início ao fim do espetáculo, mas também pela quebra de tabus na performance dos cantores e atores do elenco.

O espetáculo traz Vanessa da Mata na pele da protagonista interpretando suas canções e marca a passagem da cantora mineira pelo plano material fundindo as tradições religiosas do continente africano com o interior do Brasil.

Idealizadora do projeto, Vanessa afirma que a peça tem como objetivo enaltecer a obra musical e a existência de Clara Nunes, que viveu o preconceito de seguir os preceitos da umbanda e trouxe para o público popular estilos musicais pouco conhecidos da época.

Em entrevista exclusiva ao site IstoÉ Gente, Vanessa afirma que as religiões que diferem do cristianismo são estigmatizadas até hoje.

“As pessoas deixaram a Clara em um lugar muito pequeno para o que ela sempre foi. No sagrado que ela trazia e emanava, mas também porque ela colaborava muito com a desmitificação do mal que tem nas religiões afro-brasileiras, que o cristianismo sempre demonizou. Para as pessoas não chegarem perto, elas [igrejas católicas] demonizam muito o concorrente e isso funciona muito até hoje no Brasil”, declara.

Ao ser questionada sobre o que teria reduzido o destaque de Clara Nunes na cultura brasileira após sua morte, Vanessa aponta a falta de herdeiros para defender o seu legado mas, principalmente, o preconceito contra a sua religião e a falta de apreço pela riqueza artística do Brasil.

“Primeiro que as pessoas que estão em primeiro lugar têm herdeiros vorazes dizendo o tempo todo que elas estão em primeiro lugar. Segundo, a nossa autoestima é muito ruim para ter esses ritmos valorizados. Eles sempre foram colocados em um lugar de regional, colocado em quinto lugar, como se aquilo não fosse digno de pesquisa, não fosse digno de reconhecimento de tudo”, dispara.

“A Clara tinha uma brasilidade que deveria estar em primeiro lugar. Ela estava em um lugar de primeiríssimo encontro com a nossa ancestralidade em todos os sentidos. E eram passos dificultados mesmo. [E terceiro] O preconceito com a gente, com os nossos ancestrais. As nossas coisas são vistas como de um povo de rua, selvagem, um povo que é pé no chão, que bebe pinga. É muito primitivo”, completa.

Vanessa da Mata acredita que o Brasil tem feito o caminho inverso da valorização do produto criado no país quando emissoras de TV compram realities shows norte-americanos para exibição na TV aberta.

“A gente está copiando muito o pop americano, mas existe um outro lado, que é a base desse pop, que é a música originária deles, como a nossa. Só que a nossa não é fomentada, não é valorizada. Os americanos têm investido muito nas rádios mundiais, nos apps mundiais. É uma cultura avassaladora, porque ela vai minando as outras”, argumenta.

Vanessa da Mata 'incorpora' Clara Nunes nos palcos em protesto à intolerância religiosa no Brasil
Priscila Prade

Morte de Clara Nunes

Clara Nunes morreu de forma precoce em abril de 1983, aos 40 anos de idade, após sofrer um choque anafilático, uma reação à anestesia, em uma cirurgia para remoção de varizes.

Porém, a partida dela não é retratada no musical de forma direta. Pelo contrário, quem assiste à peça tem a impressão de que a cantora continua viva até os dias de hoje.

Jorge Farjalla, diretor do espetáculo, incluiu na trama a persona Bibi Ferreira (1922-2019), que dialoga com Clara Nunes durante toda a história, como se as duas ainda estivessem vivas. Ele conta que a intenção era deixar a imagem de Clara Nunes intacta para que o público percebesse a sua grandiosidade.

“Essa coisa de a Clara de ter tido uma morte prematura… imagina, uma mulher que morre aos 40 anos no auge da carreira? O Brasil inteiro parou, não se andava nas ruas, isso mexeu com as pessoas. Então, a minha ideia era falar dessa história sem parecer estranha para o espectador. [Foi aí que entrou] a Bibi Ferreira, que foi quem mais dirigiu a Clara e quem ensinou a Clara um pouco da questão da atuação. A Bibi constrói uma Clara de uma outra forma”, detalha.

Vanessa da Mata 'incorpora' Clara Nunes nos palcos em protesto à intolerância religiosa no Brasil
Priscila Prade

Dificuldade de patrocínio

Vanessa da Mata aponta que a direção do musical enfrentou dificuldade na captação de patrocínios para tirar a ideia do papel e tornar o espetáculo uma realidade justamente pelo fato de a intolerância religiosa ainda ser presente.

“As pessoas queriam mudar a história”, exclama. “Então, até hoje, a gente tem uma dificuldade pela ignorância desses assuntos. A Clara [Nunes] realmente era de dentro da umbanda. Ela realmente era séria nisso. Não era uma vestimenta de uma fantasia que ela botava e ia para a TV. Não era um personagem”, desabafa.

Porém, “Clara Nunes – A Tal Guerreira” acabou sendo concretizado em parceria com a Petrobras. Alessandra Teixeira, gerente de patrocínio, fala sobre a importância de investir em produções culturais.

“Em 2023, a Petrobras passou por uma remodelagem no programa Petrobras Cultural, que materializa os investimentos em cultura. Fizemos uma série de pesquisas, revisitamos o nosso programa de forma que a nossa atuação em cultura respondesse mais às demandas da sociedade, ao que estava acontecendo no cenário de cultura, olhando também como que o consumo de cultura mudou a partir da pandemia”, explica.

“A partir disso, agora temos quatro eixos transversais: produção e circulação, ícones da cultura brasileira, festivais e festas populares, cinema e cultura digital. Isso significa que todos os projetos apoiados pela Petrobras devem também, além de atender a esses eixos, conversar diretamente com a nossa estratégia, precisam ter uma correspondência e uma contribuição significativa com diversidade. Tivemos esse presente, que foi conhecer o espetáculo ‘Clara’ e poder estar junto com esse espetáculo. É um espetáculo que mostra essa grandiosidade da nossa cultura, das nossas diferenças, das nossas crenças, das oportunidades que esse país oferece”.

Ficha técnica

Temporada: de 02 de agosto a 29 de setembro de 2024
Horários: sextas às 21h, sábados às 17h e 21h, domingos às 16h e 20h
Duração: 120 minutos
Local: Teatro Bravos
Endereço: Rua Coropé, 88 – Pinheiros
Classificação etária: 12 anos
Preços: de R$ 75,00 meia entrada e R$ 300,00 inteira
Onde comprar: www.sympla.com.br
Observação: Vanessa da Mata não fará as sessões dos dias 10, 16 e 24 de agosto. Dia 30 de agosto
não haverá sessão.