REMARCAÇÃO Brasil conviveu com tabelamento nos anos 80 (Crédito:NORMA ALBANO/AE )

Em fevereiro de 1986, o então presidente brasileiro, José Sarney, anunciou uma das medidas mais lembradas até hoje no Brasil: o tabelamento de preços de todos os produtos vendidos em supermercados. Não era para menos, já que um mês antes a inflação havia ultrapassado a barreira dos 400%, segundo dados corrigidos pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea). Os consumidores iam às compras com a planilha de preços do governo na mão e denunciavam quando, não raro, encontravam mercadorias com valores diferentes nas gôndolas — por causa disso, eles logo ganhariam o apelido de “fiscais do Sarney”. Foi a última vez que o Brasil adotou uma política macroeconômica dessa natureza, mas algumas histórias daquele período vieram à tona novamente há alguns dias, quando a vizinha Argentina tomou uma decisão muito parecida. Diante de uma inflação acumulada de 52,5% em doze meses, o presidente Alberto Fernández congelou os preços de 1.500 produtos por três meses — boa parte deles alimentos e bebidas. Dias depois, o ministro do Comércio Interior, Roberto Feletti, foi a público pedir à população para ajudar o governo a fiscalizar a medida, adotada por 70% do mercado até agora. Assim, em meio às recordações dos anos 1980 no Brasil, não faltou quem fizesse comparações.

Com uma inflação de 10,25% em um ano (a terceira maior do mundo, atrás justamente da Argentina e da Turquia), alta galopante dos juros para contê-la (as previsões apontam que a Selic, que começou 2021 em 2%, terminará o ano a 8,75%) e uma moeda em derretimento frente ao dólar, economistas têm apontado semelhanças inequívocas entre essa deterioração recente da economia brasileira e a longa crise argentina. O contexto inflacionado é a principal delas. O câmbio é outro. Mas também há diferenças significativas, como a liquidez em moeda estrangeira da economia vizinha e o histórico recente dela entre sucessivos acordos com o Fundo Monetário Internacional (FMI). “Não temos feito pouco esforço, mas ainda estamos longe da Argentina”, observa Alexandre Schwartsman, ex-diretor do Banco Central. “Isso acontece não porque não somos caóticos, mas porque os argentinos conseguem ser mais caóticos que nós”.

O economista argentino Orlando Ferreres, ex-vice-ministro da Economia do seu país, tem um raciocínio parecido. Para ele, além das dimensões dos indicadores serem muito relevantes — a inflação lá é cinco vezes maior do que a daqui —, há problemas que não afetam o Brasil neste momento, como o déficit comercial. “Nós estamos encontrando dificuldades significativas com importações, por exemplo”, explica. Apesar disso, ele diz que algumas semelhanças não deixam de ser marcantes, como a queda da renda das famílias em ambos os países durante a pandemia e, principalmente, o aumento da miséria nos últimos anos. “A pobreza subiu muito. Vemos cada vez mais pessoas dormindo nas ruas das cidades argentinas e brasileiras”, completa. Esse ponto é destacado também pelo economista Flávio Comin, professor da Universidade de Cambridge. “O aumento no número de pobres é muito parecido nos dois casos”, diz. “É resultado de uma combinação entre desemprego, baixo crescimento e inflação.”

O cientista político Francisco Tinocopercebe mais afinidades do que diferenças. Na sua análise, os países se parecem porque tanto o governo de Fernández quanto o de Jair Bolsonaro estão colocando suas economias reféns de projetos eleitorais. Na Argentina, as pesquisas indicam que a oposição vencerá as eleições parlamentares de novembro — o que faz com que o presidente tome medidas para tentar mudar o panorama político. No Brasil, o fim do equilíbrio fiscal com o aumento abrupto do Auxílio Brasil, pretendido por Bolsonaro, arrepia o mercado há meses. Diante da crise crescente e sem capacidade para oferecer soluções para resolver a situação, o ministro da Economia, Paulo Guedes, dispara xingamentos aos colegas (chamou Marcos Pontes, da Ciência e Tecnologia de “burro”) enquanto tenta salvar seu emprego. A inoperância argentina é semelhante à do Brasil. “São governos populistas que só pensam na reeleição”, afirma Tinoco. “E o resultado disso é que tanto lá quanto aqui a inflação está em disparada.”

ESCASSEZ Na Argentina, preços nos supermercados estão congelados até 2022 (Crédito:Mariana Eliano)