A tentativa do governo de São Paulo de usar a inteligência artificial para a elaboração de aulas do ensino público gerou desconforto entre professores e especialistas em educação ouvidos pela ISTOÉ. Na visão deles, a medida anunciada pelo governo Tarcísio de Freitas (Republicanos) é um forte retrocesso no aprendizado dos alunos. 

Na quarta-feira, 17, o Palácio dos Bandeirantes emitiu um documento que traz novas diretrizes para a adequação dos padrões pedagógicos. Segundo a Secretaria de Educação, o Chat GPT irá elaborar a primeira versão da aula, enquanto os professores terão a missão de fazer uma correção das informações apresentadas pelo sistema. Após esse processo, as aulas serão encaminhadas para a secretaria para uma última análise. 

Ainda embrionário, o projeto deve atingir alunos do 6º ao 9º ano do ensino fundamental e os três anos do ensino médio da rede pública estadual. A elaboração de aulas digitais já deve ser implementada em maio. 

Para o professor da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) César Nunes, a proposta é um retrocesso na educação e que a medida aumenta as desigualdades no momento da aplicação do material. 

“Tem uma série de erros nessa maneira de pensar que o Chat GPT pode ser melhor que um professor para preparar as aulas. Na minha opinião, o erro mais sério é pedagógico. Esse modelo [de inteligência artificial] já foi mais do que comprovado que é fracassado. E tem um erro que eu diria que é um erro ético. Se você fizer isso, estará aumentando as desigualdades. Você não está formando esses alunos para o mundo que precisamos hoje, você está mecanizando o processo de ensino e aprendizagem”.

O professor José Eduardo Oliveira tem opinião semelhante. Na visão dele, além de ser um equívoco, a medida do governo foi tomada sem que tenha passado pela visão dos professores.

“A maior preocupação é com a confecção desses materiais. Imagine um livro didático escrito por um filósofo na disciplina de filosofia, um grande geógrafo na disciplina de geografia, ou um grande matemático, e você de alguma maneira substitui isso usando um Chat GPT ou por algum recurso qualquer de Inteligência Artificial. Vai prejudicar a dignidade desse conteúdo, além da possibilidade dele ser manipulado”.

“Eu não diria que a palavra retrocesso seja a certa. O governo tenta andar para frente com as novas tecnologias. Mas é um equívoco. Incomoda o fato de como está acontecendo e de alguém que nunca esteve em uma sala de aula, sobretudo de educação fundamental, e que não conhece a realidade da escola pública”. 

A ideia do Chat GPT na elaboração das aulas partiu do secretário de Educação, Renato Feder, um dos homens de confiança de Tarcísio de Freitas. Feder, que já tinha chefiado a pasta no Paraná, coleciona polêmicas desde a chegada a São Paulo. 

Além de erros em apostilas digitais, o secretário foi acusado de adquirir aplicativos sem licitação e de manter contratos com o governo paulista com a empresa da qual foi CEO. O secretário nega todas as acusações. 

Medo da “substituição”

Nas redes sociais e nos corredores das escolas, a preocupação com a possível “substituição” de professores nas salas de aula acendeu o alerta de educadores e do Sindicato dos Professores do Ensino Oficial do Estado de São Paulo (Apeoesp). O governo de São Paulo nega que os profissionais serão substituídos. 

A Apeoesp, porém, tem se manifestado de maneira contrária às propostas de Tarcísio. A deputada estadual Maria Izabel Azevedo Noronha (PT), uma das presidentes da instituição, afirma que o governo estadual tenta substituir os professores e enfraquecer a qualidade do ensino aos jovens. 

“É uma clara tentativa de tentar substituir o professor por Inteligência Artificial. Mas, ao mesmo tempo que tenta substituir, o professor tem que olhar tudo o que é produzido pela Inteligência Artificial. Então, essa questão tomou toda a comunidade educacional. O próprio Chat GPT afirma que o sistema não pode substituir o professor”, disse. 

“Eu entendo que ela [a inteligência artificial] pode ser usada como um meio, mas não como um fim. Essa é a questão que entendemos. Já teve o problema das videoaulas, já tivemos um problema com as apostilas digitais com erros. E eu acho que não precisa arrumar mais problema para a educação”. 

O professor José Eduardo Oliveira pontua, no entanto, que o governo avança ao incluir a inteligência artificial no dia a dia dos alunos, mas acredita que o método usado por Tarcísio seja precipitado. 

“Há uma preocupação que ronda as escolas de que os professores serão trocados. Não vejo assim. Acho que, sim, terá uma tecnologia maior, mas os professores continuarão sendo essenciais nesse processo de aprendizagem. Eu imagino que seja um equívoco. É preciso pontuar a importância do professor e os impactos deles no processo educacional”. 

Alesp em alerta 

Nos bastidores, a notícia da inclusão do Chat GPT para a formulação das aulas de alunos do ensino fundamental e médio da rede pública parece não ter chegado aos ouvidos dos parlamentares da base de Tarcísio na Assembleia Legislativa de São Paulo (Alesp). Deputados não repercutiram o caso e mantiveram o apoio a Feder. 

Parlamentares da oposição, porém, se articulam para barrar a ideia na Justiça. Deputadas do PSOL e PT já acionaram o Ministério Público sobre o caso. 

Um dos documentos foi enviado por Mônica Seixas (PSOL) ainda na sexta-feira, 19. Nele, a deputada afirma que o sistema poderá apresentar um conteúdo enviesado, o que prejudica o aprendizado. Além dela, assinam a representação a deputada Sâmia Bomfim e a vereadora Luana Alves, ambas do PSOL. 

“A gente não sabe muito bem precisar, por exemplo, a qualidade da aula que o Chat GPT vai oferecer. A inteligência artificial é construída a partir da coleta de dados, não a partir de experiência científica. Então, a partir do momento que tem muita gente falando uma coisa, a tendência é que o Chat GPT adote aquilo como verdade”

“Se tiver muita gente com opinião homofóbica, muita gente com opinião racista, muita gente com elaborações de ódio discriminatório, o Chat GPT pode adotar isso como verdade e prejudicar o aprendizado não só na formação como aluno, mas na formação como cidadão”, disse Mônica à reportagem. 

A ISTOÉ tentou uma entrevista com representantes da Secretaria de Educação, mas não obteve retorno da assessoria de imprensa da pasta.