Gulnor Saratbekova passou mais da metade de sua vida no Uruguai, aonde chegou aos 19 anos vinda do Tajiquistão. Apesar de ter adquirido a cidadania legal, ainda é considerada estrangeira, um limbo que causa múltiplos problemas.

“Eu me sinto uma uruguaia de segunda, sem os mesmos direitos dos cidadãos naturais”, diz essa mulher de 43 anos à AFP.

A legislação uruguaia faz distinção entre cidadania “natural”, reservada aos nascidos no território nacional e seus filhos e netos, e cidadania “legal”, à qual os estrangeiros podem aspirar, mas, segundo a interpretação atual, sem obter a nacionalidade.

Mais de 30 mil pessoas no Uruguai sofrem as consequências de uma “cidadania incompleta”, de acordo com a associação civil Somos Todos Uruguayos, que denunciou uma violação de direitos perante a Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH).

Para Saratbekova, a questão é especialmente grave: ao aceitar a cidadania legal uruguaia, precisou renunciar à do Tajiquistão, que não permite a dupla nacionalidade exceto com a Rússia. E como o Uruguai não a reconhece como nacional, ela se tornou apátrida.

“As autoridades uruguaias não podem imaginar o que é viver em um limbo constante”, afirmou em 1º de março na sede da CIDH em Washington, segundo documentos consultados pela AFP.

O Uruguai “nos reconhece como de segunda classe”, lamentou-se Arvand Azizeddin, em 1º de março na sede da CIDH em Washington, segundo documentos consultados pela AFP.

Apesar de ser cidadão legal uruguaio, ele não conseguiu abrir uma conta bancária no país, porque era registrado como nacional iraniano.

O país sul-americano é um dos poucos do mundo que não concedem a nacionalidade aos estrangeiros que solicitam e preenchem os requisitos para a cidadania, aponta à AFP Leroy Gutiérrez, porta-voz da Somos Todos Uruguayos.

Isso contradiz, em alguns casos, os tratados internacionais assinados e ratificados pelo Uruguai.

“Todo o espectro político identifica que há um problema, mas os dois projetos de lei apresentados em 2021 para tentar resolvê-lo ainda não foram discutidos”, conta Gutiérrez, um cidadão legal uruguaio nascido na Venezuela.

– “O drama dos passaportes” –

Diante da CIDH, representantes do Estado uruguaio se comprometeram a “buscar soluções concretas que possam ser implementadas a curto ou médio prazo”.

Fontes do Ministério das Relações Exteriores disseram à AFP que estão trabalhando para resolver o que muitos chamam de “o drama dos passaportes”.

Desde 1994, os passaportes uruguaios indicam no campo de nacionalidade o país de nascimento do portador. Essa mudança causou sérios problemas a partir de 2015, quando a Organização de Aviação Civil Internacional, uma agência da ONU, disponibilizou a emissão de passaportes eletrônicos.

Com a leitura mecânica, a discrepância entre o código de nacionalidade e o código do país emissor passou a disparar alarmes.

Assim, cidadãos legais uruguaios têm sido interrogados por posse de documento falso, impedidos de embarcar em voos ou deportados ao tentar entrar em países que exigem vistos que não precisariam se sua nacionalidade uruguaia fosse reconhecida.

Saratbekova, que pertence à minoria étnica pamiri, muito perseguida no Tajiquistão, teme sair do Uruguai, ser retida em outro lugar e acabar deportada para seu país de origem.

“Se fosse deportada para lá, com certeza seria presa”, assegura essa gerente de sustentabilidade em uma empresa uruguaia.

Também se sentem discriminados os estrangeiros que chegaram ao Uruguai ainda menores de idade, pois só estão habilitados a solicitar a cidadania legal ao completarem 18 anos.

Oscar Carsi, um atleta de alto rendimento que emigrou de Cuba quando criança, não pôde representar o Uruguai, país onde foi criado, em um evento esportivo internacional aos 17 anos.

“Fiquei triste”, diz à AFP o hoje estudante de medicina de 22 anos. “E mesmo tendo a cidadania legal uruguaia, talvez não teria conseguido ir, porque não teria a nacionalidade”.

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