PREDESTINADOS Controladores e egocêntricos: os dois líderes se respeitavam, mas não eram próximos (Crédito:Divulgação)

Poucos personagens merecem uma biografia de mil páginas. Nesse início do século 21, por exemplo, não surgiu ainda nenhuma figura histórica que inspire tal dedicação por parte de um biógrafo. Olhando para o século 20, vemos, porém, nomes que conquistaram com sangue e lágrimas o direito de serem chamados de heróis. Dois deles, por coincidência ou não, ganham biografias lançadas no Brasil simultaneamente e iluminam esse deserto de líderes globais. Muito antes da União Europeia, esses europeus se uniram para enfrentar Adolf Hitler e salvar a civilização ocidental: o britânico Winston Churchill e o francês Charles de Gaulle. “Churchill – Caminhando com o Destino”, de Andrew Roberts, e “Charles de Gaulle – Uma Biografia”, de Julian Jackson, têm mil páginas cada, mas não há palavras desperdiçadas em nenhum dos dois livros. São relatos minuciosos e completos das vidas dessa dupla de imortais, cujas decisões militares e instinto político mudaram para sempre a história da humanidade. Egocêntricos, corajosos, incansáveis, controladores. Há muitos adjetivos em comum entre eles, mas as biografias revelam que não havia amizade ali. Respeito, sim. Apesar de trajetórias bem diferentes, a guerra os forçou a sagrar uma aliança sólida e improvável, onde necessidades mútuas e simbióticas de atuação se mostraram mais forte do que a antipatia que sentiam um pelo outro.

Por trás das biografias há escritores de peso. Professor do King’s College, em Londres, e historiador respeitado, Andrew Roberts é Fellow da Royal Society de Literatura e membro da International Churchill Society. Julian Jackson é professor da Queen Mary University of London e um dos maiores especialistas mundiais em história da França. Em comum, os dois autores possuem a nacionalidade (ambos são ingleses) e a admiração por seus biografados.

Um aristocrata

Em uma pesquisa com três mil adolescentes britânicos feita em 2008, 20% responderam que Churchill era um personagem fictício. As respostas não vinham simplesmente do desconhecimento histórico, mas do reconhecimento de que sua vida foi tão extraordinária que só poderia ter sido inventada. “Caminhando com o Destino” é a biografia definitiva de Churchill por diversas razões, principalmente porque Roberts teve acesso aos arquivos da família real. A permissão foi concedida em pessoa pela própria Rainha Elizabeth II. Ele também foi o primeiro biógrafo de Churchill a ter acesso irrestrito aos diários de guerra do pai da rainha, o rei George VI. A obra traz itens curiosos e relevantes do ponto de vista histórico, como mapas, fotos e uma árvore genealógica que nos lembra de que Winston Leonard Spencer-Churchill era, ele mesmo, um lorde. Filho de Randolph Churchill e neto do Duque de Marlborough, o líder britânico tinha ascendência americana por parte da mãe, a bela socialite Jennie Jerome. Se por um lado, o jovem Winston trazia sangue de político – Randolph era membro do Parlamento e chegou a ser cotado para o cargo de primeiro-ministro –, por outro corria em suas veias o gosto pela escrita e pelas notícias. Seu avô materno, Leonard Jerome, era um milionário americano conhecido como “Rei de Nova York” e por ser proprietário do jornal “The New York Times”. Assim como em outros momentos do livro, repletos de humor britânico e ironia, a descrição da infância de Churchill é bastante divertida.

“Lutaremos nas praias, lutaremos nos campos e nas ruas, lutaremos nas colinas. E nunca nos renderemos”
Winston Churchill, líder britânico (Crédito:Divulgação)

O garoto era malcriado e sofreu surras periódicas no tradicional colégio St. George – o castigo era aceito à época – por desobediência, embora não fosse um mau aluno. Isso o levou a mudar de escola diversas vezes, sempre para instiuições onde o desafio a autoridade não era visto com tanta rigidez. Churchill entrou ainda jovem para as Forças Armadas em busca da experiência que o ajudasse a forjar sua personalidade como estadista, seu grande sonho. Como não havia guerras na Europa, persuadiu um general a designá-lo para atuar ao lado do exército espanhol, que enfrentava um levante em Cuba. A influência do pai o ajudou e ele partiu para a ilha. Antes disso, convenceu o jornal “Daily Graphic” a contratá-lo como correspondente de guerra. Churchill buscava uma fonte de renda alternativa aos humores da mãe, que queria controlar seus gastos. Nessa aventura jornalística descobriu que tinha talento para escrever. Passou a cobrar cada vez mais caro pelo novo ofício, e em cinco anos já era o correspondente de guerra mais bem pago do mundo. Nesse exercício, Churchill aprendeu a se comunicar com o público, o que lhe auxiliaria mais tarde na elaboração de discursos incisivos e memoráveis. A isso acrescentou-se também sua paixão pela leitura, que o levou ainda jovem a devorar autores como Darwin, Schopenhauer e Adam Smith, entre outros pensadores que construíram sua ideologia. “O poder retórico não é inteiramente concedido nem adquirido, ele é cultivado”, dizia. “O orador é a personificação das paixões das multidões. Antes de levá-las às lágrimas, deve ele mesmo entregar-se às suas.”

Espírito francês

Para se ter uma ideia do que significa a figura de Charles de Gaulle na França, basta ver o resultado de uma pesquisa realizada em 2010: ele ficou disparado no topo dos franceses mais importantes da história – isso em um país que foi berço de Napoleão. Entretanto, nem mesmo De Gaulle poderia prever essa unanimidade em 1969, quando deixou o poder. Durante seus trinta anos de vida política, foi o personagem mais reverenciado da história francesa, mas também o mais odiado. Essa paixão e ódio que despertava o levou a sofrer mais de trinta atentados – escapou friamente de todos.

Charles Andrés Joseph Marie de Gaulle nasceu na casa dos avós em Lille, no norte da França. Mudou-se logo para Paris, mas manteve o “jeito de ver o mundo” da região, uma ética, segundo ele, que o levava a desprezar o esnobismo da elite política parisiense. Assim como Churchill, De Gaulle foi um menino hiperativo e indisciplinado e, igualmente, não foi um aluno brilhante. Os dois líderes também tinham o mesmo hobby: colecionavam soldadinhos de brinquedo. Aos quinze anos, De Gaulle decidiu seguir a carreira militar. Quando a Primeira Guerra Mundial teve início, em 2 de agosto de 1914, o francês de 24 anos já era tenente e tinha, sob suas ordens, cerca de cinquenta soldados. Apesar de sempre ter usado politicamente a experiência no conflito, não chegou efetivamente a participar de muitos combates por uma simples razão: foi logo capturado. Passou 32 meses como prisioneiro de guerra, encarcerado em seis campos diferentes – o período mais longo em Ingolstadt, na Bavária, sul da Alemanha. Com a vitória dos aliados, em 11 de novembro de 1918, voltou para a sua amada França, onde retomou a carreira militar e colocou seu ambicioso plano pessoal em ação.

“A chama da Resistência Francesa não pode se extinguir e não se extinguirá” Charles de Gaulle, no primeiro discurso no exílio, em Londres (Crédito:Divulgação)

Ganhou espaço político e foi subindo na hierarquia, até virar general e subsecretário de Estado da Defesa. Apesar de ser um nome conhecido das altas rodas governamentais, nunca chegou a ser uma figura popular entre o povo francês. Além da patente, ficou conhecido por seus livros sobre liderança e estratégia militar, onde se apresentava como especialista em tanques de guerra, instrumentos bélicos que, para ele, definiriam os combates que viriam a acontecer na Europa. A publicação desses livros teóricos levou De Gaulle a ser considerado um general moderno e atento às novas tecnologias da época, o que lhe rendeu ainda mais prestígio.

O que lhe trouxe fama, no entanto, foi sua voz transmitida pelo rádio. Quando as tropas alemãs invadiram o Vale do Loire e marchavam para tomar a capital, Paris, De Gaulle se reuniu com o então Primeiro-Ministro francês, Paul Reynaud, e ficou chocado ao saber que ele estava prestes a assinar um armistício com a Alemanha, o que, na prática, significava uma rendição francesa. Pegou seu carro e dirigiu durante a noite para Bretanha, a fim de tomar um barco no canal da Mancha. Chegou a Londres em 16 de junho, véspera do anúncio do acordo entre França e Alemanha. Foi aí que nasceu formalmente a aliança entre Churchill e De Gaulle: o britânico ofereceu a rádio BBC para que os discursos de De Gaulle pudessem inspirar a Resistência Francesa a partir da Inglaterra. Sua retórica inflamada e patriótica ganhou cada vez mais adeptos e levou ao rompimento com o governo francês colaboracionista. Do exílio, De Gaulle declarou o nascimento da “França Livre” e se tornou uma lenda.

Duas biografias monumentais como essas exigem certa dedicação do leitor, mas acredite: as vidas dos homenageados são tão interessantes e a prosa dos autores é tão fluida que a leitura não se torna um fardo, e sim um prazer. Por mais surpreendente que possa parecer, esses livros de mil páginas não são um exagero: são documentos que fazem justiça ao tamanho dos biografados. Até porque, se fosse para descrever a nfluência que esses homens exercem até hoje sobre a história do mundo, seria necessário um número de páginas bem maior.

Lançamentos

“Churchill – Caminhando com o Destino”
Andrew Roberts
Companhia das Letras
Preço: R$ 107

“Ao ser nomeado primeiro-ministro senti como se estivesse caminhando com o destino, e que toda a minha vida pregressa não fora senão uma preparação para essa hora e para essa provação” Winston Churchill, líder britânico

“Charles de Gaulle – Uma Biografia”
Julian Jackson
Zahar
Preço: R$ 116

“Não houve um momento sequer em minha vida no qual eu não tivesse a certeza de que um dia estaria chefiando a França” Charles de Gaulle, líder francês

Os discursos de Churchill

O líder britânico chegou a escrever um livro sobre suas técnicas de oratória (“The Scaffolding of Rhetoric, “O Alicerce da Retórica”, em tradução livre), mas não chegou a publicá-lo. Sua biografia cita trechos do manuscrito:

1. Palavras corretas
O bom discurso deve conter as palavras mais adequadas para descrever determinada situação. Churchill defendia o uso de palavras curtas, de uso corrente.

2. Ritmo e som
O som exerce uma influência única no cérebro. O discurso deve soar bem. Churchill usava muito o verso branco, frases que têm ritmo, mas não rimam – a exemplo de Shakespeare, um de seus autores favoritos.

3. Argumentação
Use bons argumentos, “todos apontando na mesma direção”. O texto deve ser construído de forma que o público antecipe a conclusão, para que no final haja aplausos e concordância.

4. Uso de analogias
Comparações diretas levam a um fácil entendimento, como comparar uma briga entre países a uma briga dentro de uma família.

5. Emoção
Busque expressões que reflitam os sentimentos de quem está ouvindo, mas também do próprio orador. Seja verdadeiro.

De Gaulle e a liderança

O francês escreveu sobre as características de um líder no livro “O Fio da Espada”:

1. Fagulha criativa
O líder deve aliar criatividade com a capacidade de abstração e a inteligência crítica.

2. Mistério e distância
O líder precisa cultivar mistério e manter distância enquanto exerce uma grande dose de egoísmo, orgulho, dureza e charme.

3. Vocação
Liderança é vocação. É um exercício solitário da vontade, uma luta íntima que pode ser mais ou menos intensa, dependendo do indivíduo.