Parece existir quase um cordão de isolamento muito bem firmado a defender o Judiciário brasileiro e, por tabela, a democracia e seus pressupostos legais, de aventuras débeis que afrontam os valores republicanos brasileiros. Muito embora, as tentativas nesse sentido não parem de acontecer, em uma cruzada incessante. Como se sabe, de uns tempos para cá, vêm sendo revelados os podres tirados de uma caixa de Pandora bolsonarista, numa escalada de aberrações difícil de acreditar. O ministro do Supremo Tribunal Federal Gilmar Mendes definiu à perfeição esse irrefreável pendor golpista que se mostrava em andamento pelas mãos e interesses do então capitão do Planalto: “A gente estava sendo governado por gente do porão”. A fala do ministro e a ocasião em que ela se deu traduzem muito do espírito de agentes do poder constituído de passar uma sensação de segurança institucional do Brasil para o mundo nesse momento.

Gilmar Mendes estava em Portugal dias atrás por ocasião do Brazil Conference Lisboa, organizado pelo grupo LIDE, que vem promovendo encontros como esse em diversas praças internacionais – o anterior foi em Nova York, em novembro último, e já há mais uma edição agendada para abril, em Londres – com o intuito de mostrar justamente o outro lado, produtivo e propositivo, do País, não apenas no campo da institucionalidade, mas, também, no econômico. A empreitada tem sido realizada de maneira robusta, levando nomes de primeiro escalão para tais convescotes. Em terras lusitanas estiveram, por exemplo, não apenas expoentes do PIB, como Abílio Diniz, Luiza Trajano, Luiz Trabuco e Isaac Sidney, presidente da Febraban, como figuras de proa da corte brasiliense e Federal — além de Gilmar, Ricardo Lewandowski, Bruno Dantas, do Tribunal de Contas da União, Humberto Martins, ministro do Superior Tribunal de Justiça (STJ), o governador do Rio, Cláudio Castro, e prefeitos. Inclua-se ainda a ministra do Planejamento, Simone Tebet, por videoconferência. Todos eles regidos na condução temática do ex-presidente Michel Temer e do ex-ministro do Desenvolvimento Luiz Fernando Furlan, chairman of the board do LIDE.

Michel Temer afirma que o Brasil cansou de “traumas institucionais”. Ele defende o semipresidencialismo, com primeiro-ministro e presidente coexistindo na condução do Estado

Foi um meeting de mensagens indiscutivelmente relevantes, seja pelo gabarito dos participantes, seja pela ocasião em que se deu. Lisboa ouviu e deu tratamento de chefe de Estado aos convidados, conduzidos a cada localidade das discussões por batedores policiais e um esquema de segurança que blindava o encontro de eventuais protestos mais violentos (uma precaução adequada após o dramático 8 de janeiro). Mas, substancialmente, em que o Fórum de Lisboa marcou essa nova etapa de discussões político-estruturais que parece brotar dos rescaldos arrivistas de tempos recentes? Pode-se dizer que até mesmo sobre o regime de governo os debates se debruçaram. Temer tem levado aos quatro cantos a ideia do semipresidencialismo como alternativa, em modelo semelhante ao que vigora hoje em Portugal, com um presidente e um primeiro-ministro coexistindo na condução do Estado. Alega Temer que o Brasil cansou de impeachments e de “traumas institucionais”.

Precisaria passar por uma nova fase de tranquilidade de gestão, incluindo uma estrutura parlamentar muito claramente dividida entre a base governista e a de oposição. Esse aprimoramento do sistema, propõe ele, se daria apenas a partir de 2030, para evitar a pecha de casuísmo, já que a atual regra prevê o mecanismo de reeleição e seria preciso dar ao atual ocupante do cargo a possibilidade de exercer o direito antes da ruptura com o modelo em vigor.

REFLEXÕES Gilmar Mendes (à esq.), Bruno Dantas e Ricardo Lewandowski (centro) e Michel Temer (à dir.): portadores de mensagens de alta relevância (Crédito:Divulgação)

Carta de São Francisco

Participante por meio de uma videoconferência exclusivamente transmitida no evento, o ministro Alexandre de Moraes, diante das gestões que incitavam a desordem e instabilidade, tratou de responder às mais recentes denúncias do senador Marcos do Val sobre um ardil para derrubá-lo por meio de uma gravação fajuta que seria montada em uma audiência privada. Classificou de “ridícula” a tentativa e aproveitou o episódio como alerta a sinalizar até onde os gestores do pretenso golpe mostravam-se dispostos a ir para lograr êxito. Lewandowski, em vias de se aposentar do STF, tem uma visão muito clara em relação ao que todos vêm chamando agora de uma operação das Organizações Tabajara (referência jocosa ao programa satírico Casseta e Planeta): “não só nesse caso vivemos atualmente um dos momentos mais difíceis, também internacionalmente, desde a queda do Muro de Berlim. Há um agravamento de tensões. Surgem lideranças disseminando ódio e preconceito numa busca de fragilidade dos regimes democráticos”.

Lewandowski propõe um novo acordo de Bretton Woods ou nos moldes da Carta de São Francisco, das Nações Unidas, com instrumentos financeiros e de ações multilaterais conjuntas contra o que classifica de “déficits da democracia representativa”. Na sua visão, o poder da representatividade social precisa ser refortalecido e ampliado. “A democracia brasileira é resiliente, mas será necessário contar com o revigoramento dos organismos multilaterais”, apontou. O magistrado Luís Roberto Barroso, que foi bem aplaudido pela plateia, classifica o atual quadro como de um “atraso civilizatório sem precedentes” na história do País. “Tenho uma visão não política, mas institucional, bastante severa dos tempos que nós atravessamos recentemente, marcado por um contexto em que se naturalizaram as ofensas, a grosseria, a difusão do ódio e a extração do que de pior havia nas pessoas”. Barroso lembrou de Roberto Jefferson e Daniel Silveira, que foram presos após promoverem ataques a membros da Justiça, e disse que “a absurda e indevida” politização das Forças Armadas, somada ao desprezo pela educação, ciência e cultura foram retratos do retrocesso dos últimos tempos.

O ministro do Tribunal de Contas Bruno Dantas faz coro às reclamações nesse sentido, alegando que o Brasil, de uma quadra de tempo para cá, pareceu acorrentado ao passado. Ele sugeriu a cooperação público-privada como “vacina” aos impulsos autoritários. O TCU, querendo dar exemplo, no momento em que suspeições foram lançadas contra as urnas eletrônicas, se propôs a fazer auditoria dos boletins em mais de cinco mil equipamentos, abrangendo um universo superior a cinco milhões de votos, e trouxe a conclusão de que ocorreu “zero” de divergência em relação ao resultado divulgado, assenhorando assim respaldo ao processo. O Tribunal também mergulhou numa tarefa de revisão periódica da eficiência do gasto público, juntamente com o Ministério do Planejamento, e procurou enquadrar os planos governamentais dentro da Lei de Responsabilidade Fiscal. A ministra Simone Tebet, titular do Planejamento, não deixou esfriar o assunto e enalteceu ser possível o controle da despesa pública, sem que isso comprometa o esforço generalizado da equipe recém-empossada pelo resgate da dívida social.

Para Tebet, após uma longa tormenta, o Brasil retomou, finalmente, o lado certo da história. “Poucas vezes tivemos alegria como a de primeiro de janeiro desse ano, com a multidão proclamando a liberdade, a vitória da vida sobre toda a sorte de gestos de ódio. A barbárie de vândalos que flertavam com o autoritarismo, a destruição e a anarquia ficaram para trás. A alma do povo brasileiro é democrática e ela venceu, se solidificou”. A ministra, em menção especial ao ex-governador João Doria, também presente, disse que ele salvou milhares de vida com o seu discurso pró-vacinas e que o governo federal, deliberadamente, atrasou-se três meses nesse aspecto, fazendo ainda mais decisiva a missão empreendida por Doria. Para o ex-governador, o fundamental na nova etapa do Brasil é a busca do diálogo. As rodadas do Brazil Conference lá fora – essa de Lisboa com mais de 250 interlocutores presentes – têm buscado funcionar como ponte de tais tratativas.