O Brasil deixou de ser oficialmente uma monarquia no dia 15 de novembro de 1889, quando um grupo de militares destituiu o imperador Pedro II para instituir um Governo Provisório liderado pelo Marechal Deodoro da Fonseca. Curiosamente, o homem escolhido por seus pares de farda e espada para chefiar o golpe de Estado e assumir a presidência era monarquista. Deodoro era um militar que impunha respeito, mas era também amigo do imperador. Só aceitou participar do levante graças a uma “fake news”: o boato espalhado pelos próprios republicanos de que havia uma ordem do governo para prendê-lo. A falsa notícia encorajou a marechal a reunir tropas e marchar pelas ruas do Rio de Janeiro. Àquela altura, a mudança de regime não entusiasmava os brasileiros. Na eleição parlamentar de 31 de agosto, a última do Império, apenas dois deputados do Partido Republicano se elegeram. Deodoro era do Partido Conservador. Como o imperador se recusou a reagir militarmente ao golpe, o poder mudou de mãos sem que uma gota de sangue fosse derramada. Nada de guilhotina, como as que decapitaram tantas figuras da realeza da França cem anos antes; nada de derrubar presídios para libertar os condenados; nada de ideias igualitárias como as guiaram os franceses após sua Revolução urdida no seio do povo. No Brasil que irrompia do golpe, as mudanças estabelecidas foram burocráticas: a reforma do Código Comercial, a criação de um Código Penal, a separação entre Igreja e Estado. Deodoro renunciou à presidência dois anos depois. E embora o Brasil seja desde então uma República Federativa, na prática, a estrutura de poder criada no período colonial e consolidada durante o império se manteve. Uma vez republicano, o País nunca se empenhou em abolir privilégios monárquicos. A lei, que deveria ser aplicada a todos, costuma ser interpretada de acordo com os interesses particulares de certos grupo.

“É vergonhoso que altas autoridades ajam como monarcas despóticos”, afirma o economista Celso Luiz Tracco, autor do livro “Às margens do Ipiranga — a esperança em sobreviver numa sociedade desigual”. Tracco cita exemplos do Brasil de hoje para comprovar que nem sequer somos capazes de aspirar ao lema da Revolução Francesa: “Não temos Liberdade porque não temos segurança nas ruas; não temos Igualdade por que não temos 15 salários por ano e nem férias de 60 dias; não temos Fraternidade, porque a situação que vivemos gera um clima de ódio e de extremismos”. A histórica desigualdade social brasileira vem se perpetuando por séculos — e se torna ultrajante quando a perpetuação das vantagens oferecidas a alguns impede que a Justiça seja aplicada a todos. Desde os tempos em que a família real se estabeleceu no Brasil, a obtenção de vantagens e favorecimentos é uma regra que se mantém inalterada, beneficiando quem pertence aos círculos de poder. Guardadas as devidas proporções, repete-se ainda hoje o modelo que vigorava na monarquia europeia, em que a sociedade era formada por clero, nobreza e Terceiro Estado. Sem possuir quaisquer direitos, a imensa maioria da população sustentava a todos os demais por meio do pagamento de impostos.

A histórica desigualdade social brasileira se torna ultrajante quando a perpetuação das vantagens oferecidas a alguns impede que a Justiça seja aplicada a todos

No caso brasileiro, a República foi instituída apenas um ano após a abolição da escravatura, fato determinante para que se mantivesse a estrutura social esmiuçada por Gilberto Freyre em “Casa-Grande & Senzala” (1933), obra fundamental para compreender a formação sociocultural do Brasil. Para o historiador pernambucano, a arquitetura da casa-grande traduz a organização social e política do País ao permitir que o proprietário seja o soberano do que estiver sob seus domínios, sejam escravos, parentes, amantes, padres e até políticos. Se o fim do regime escravocrata esvaziou as senzalas, não foi o suficiente para alterar a visão patriarcalista que tudo permitia ao senhor da casa-grande. Poder significava ter privilégios, inclusive o de estar acima das leis — elas que se curvassem às conveniências.

Até que a operação Lava Jato começasse a prender políticos influentes e milionários, a ideia de uma Justiça cega e aplicada indiscriminadamente a todos era vista com descrença pelos brasileiros — sobretudo pelos corruptos que praticam atos ilícitos confiando na impunidade. Felizmente, essa história começa a mudar. O arcabouço judiciário brasileiro ainda privilegia quem têm posses, não apenas por poder contar com a defesa dos melhores advogados, mas por serem eles quase que automaticamente beneficiados por uma incomum agilidade processual — como ocorreu no julgamento do habeas corpus do ex-presidente Lula. Uma frase célebre repetida por quem circula nas altas rodas do Direito brasileiro resume o quadro em poucas palavras: “Quem tem recursos tem recursos”. São raros os brasileiros que podem recorrer às instâncias superiores da Justiça. Mais que fruto de uma desigualdade social e econômica, essa diferenciação que determina os privilégios para uns e as punições para os demais é herdeira de uma mentalidade fincada na arquitetura das casas grandes e das senzalas.

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