Lula subiu a rampa do Palácio do Planalto em 1º de janeiro certo de que entre os principais desafios do terceiro mandato estava a construção de uma relação mútua de respeito e confiança com as Forças Armadas, o que foi minado pelo bolsonarismo. Bastou uma semana para que a empreitada ficasse ainda mais árdua. A cumplicidade de parte dos fardados com a tentativa de golpe por extremistas aprofundou uma ferida aberta. Para estancá-la, será necessário um trabalho a várias mãos — de autoridades e generais. Não é o momento de contemporizar. A virada de página depende da punição exemplar dos militares engajados no atentado contra os Três Poderes e na retomada do tratamento da Aeronáutica, do Exército e da Marinha como instituições alheias ao debate ideológico nacional.

O processo levará tempo. O “Capitólio brasileiro” existiu porque, conforme sublinhou Lula à “GloboNews”, a inteligência de órgãos como o Gabinete de Segurança Institucional (GSI), loteado entre militares, “não existiu”. Tanto que, desinformados sobre a iminência do quebra-quebra, na tarde do dia 8, Lula e Geraldo Alckmin estavam em São Paulo e o ministro da Defesa, José Múcio Monteiro, almoçava tranquilamente no restaurante Fuego, Alma e Vino, em Brasília, onde chegou a encontrar a presidente do PT, Gleisi Hoffmann, e o líder do governo no Congresso, Randolfe Rodrigues. Não bastasse o erro crasso de órgãos especializados no monitoramento de ameaças, imagens mostram fardados participando da barbárie. Relatos do governador afastado Ibaneis Rocha dão conta que, depois da algazarra, o comando militar impediu que os amotinados fossem presos na porta do Quartel-General do Exército.

Com a quebra de confiança, um pente-fino em cargos de confiança tornou-se inevitável. Desde o atentado, Lula dispensou pelo menos 140 militares de postos-chave. A maior parte deles concentrava-se no GSI, comandado pelo general da reserva Marco Edson Gonçalves Dias, que resistia em demitir profissionais que trabalharam com Augusto Heleno, um dos homens-fortes de Bolsonaro. Nomes da cozinha do presidente, em outra ponta, acompanham com lupa os movimentos dos comandantes das Forças Armadas. Os três são considerados bolsonaristas, mas, ainda assim, vistos de formas distintas. Entre aliados de Lula, o almirante de Esquadra Marcos Sampaio Olsen, chefe da Marinha, é encarado como um “legalista” e o tenente-brigadeiro Marcelo Kanitz Damasceno, à frente da Aeronáutica, tratado como um fardado “compreensivo” e “predisposto a ajudar”. As preocupações pousam somente sobre o comandante do Exército, general Júlio Cesar de Arruda, que, para petistas, tem se deixado pressionar pelo embate ideológico.

NEGOCIAÇÃO O comandante do Exército, Júlio Cesar de Arruda (esq.), e o general Gonçalves Dias, que assumiu o GSI, mas manteve ex-auxiliares de Augusto Heleno (Crédito:Divulgação)

Arestas

Em meio ao ambiente caótico, Múcio submergiu e rejeita pedidos de entrevistas. Segundo interlocutores, em um momento tão sensível, ele teme que alguma fala desagrade qualquer um dos partícipes da negociação pela pacificação. Voltou-se, assim, aos bastidores. Ao lado de Rui Costa, o ministro da Defesa costurou uma reunião entre Lula e os três comandantes para arrefecer os ânimos. O tête-à-tête visa a uma “nova era”, depois de, em 9 de janeiro, o presidente ter despejado reclamações sobre os militares a respeito da ineficiência na proteção dos Três Poderes.

A partir de agora, todos devem se debruçar em projetos para o desenvolvimento tecnológico das Forças Armadas a fim de resgatar o enfoque sobre o papel institucional dos fardados. Os comandantes se dizem dispostos a reconstruir pontes. O Exército, por exemplo, mira um reforço no Orçamento para a modernização de helicópteros que atuam na Amazônia e a ampliação do contingente de forças blindadas. A Marinha discute investimentos em submarinos a diesel e atômicos. A FAB tem se dedicado aos caças Gripen.
Em um aceno, discute-se a possibilidade de o governo “segurar” o levantamento de alguns sigilos sensíveis para o Exército e, assim, evitar novos desgastes públicos e trocas de farpas nos bastidores. Entre os temas delicados, está o processo administrativo contra Eduardo Pazuello, arquivado depois de o ex-ministro da Saúde participar de manifestação ao lado de Bolsonaro no Rio de Janeiro, em 2021, infringindo o regime interno. Outro assunto a ser evitado é a participação da Força na produção de medicamentos ineficazes contra a Covid-19, como a cloroquina, por ordem do ex-presidente.

Nos próximos dias, Lula deve demonstrar disposição em atender as demandas dos fardados. Quer deixar a crise para trás e começar, de fato, a governar. E frisará que sabe distinguir algumas “más sementes” das Forças. O presidente defende que a punição aos engajados na tentativa de golpe não se trata de uma caça às bruxas, mas de uma resposta adequada àqueles que descumpriram o respeito à hierarquia militar e desprezaram a Constituição. A anistia jamais será colocada à mesa. E é bom que assim seja. O Brasil já vivenciou a péssima experiência de jogar para debaixo do tapete os crimes da ditadura. A negação da realidade apenas escancara as portas para a trama de barbáries.