08/09/2021 - 20:09
Antes mesmo de Cristo já tínhamos obras mostrando o corpo humano. Um exemplo é Afrodite de Cnido, produzida por Praxiteles no século IV aC. Depois disso, tivemos muitos séculos de obras com nus femininos e masculinos. Cito alguns exemplos: Davi de Michelangelo (1501-1504) é a mais famosa escultura do mundo, além de ser a maior estátua de um homem nu (5 metros de altura e 5,5 toneladas de mármore). Ticiano foi um dos artistas que melhor registrou a privacidade das mulheres e sua obra Vênus de Urbino (1538) mostra uma beleza e uma perfeição quase que divina. Sandro Boticelli produziu O Nascimento de Vênus (1486), um ícone da Renascença que mostra a Deusa do Amor de uma maneira tão marcante que a imagem fica em nossa memória para sempre. Rembrandt, Édouard Manet, Edgar Degas com nus femininos e masculinos, Modigliani, Picasso e uma infinidade de pintores também exploraram essa temática. Mas por que o nu está desaparecendo da arte nos dias de hoje?
Os mais céticos dizem que vivemos em uma era de pessoas críticas e vigilantes, que ignoram o verdadeiro significado da arte. Prefiro acreditar que é uma fase e que ela vai passar, mas confesso que, de vez em quando, também me assusto com as manifestações das pessoas. Há alguns anos, um grupo de americanos fez um enorme barulho e colocaram o The Met (Museu Metropolitan de Nova York) contra a parede. Fizeram uma petição digital solicitando que museu removesse a pintura Teresa Sonhando (de Balthus, Balthasar Klossowski, 1908 – 2001), que retrata uma adolescente de olhos fechados. Nos anos 70, o quadro era considerado uma pintura importante do acervo, mas em 2017 a obra foi alvo de severas críticas: o Met foi acusado de apoiar o voyeurismo e a objetificação de crianças.
Felizmente, o Met aguentou a pressão e divulgou que sua missão era colecionar, estudar, preservar e apresentar obras que conectam as pessoas com criatividade, conhecimento e ideias. Com esse argumento, rejeitou veementemente a petição e decidiu não remover a pintura de suas galerias. Depois do ataque, reformulou a explicação do quadro em seu site, escrevendo: “Balthus, assim como inúmeros artistas modernos, acreditava que o tema da criança era uma fonte de espírito bruto, ainda não moldado pelas expectativas da sociedade”. Destacou também que, embora possa parecer perturbador para os nossos olhos hoje, muitos artistas do início do século XX (como Paul Gauguin, Edvard Munch e Pablo Picasso), também criaram obras sobre a sexualidade adolescente e projetaram interpretações subjetivas em seus trabalhos.
As artes visuais são um dos meios mais importantes que temos para refletir sobre o passado e o presente, simultaneamente. Concordo com o Met quando ele diz que espera motivar a contínua evolução da cultura atual por meio de uma discussão informada e que respeite a expressão criativa. Vale lembrar que, até o século XIX, tornou-se uma regra que os nus femininos em pinturas deveriam ter um modelo para transmitir um conjunto de ideias, crenças e valores. Os artistas usavam a forma nua como pretexto para aspirar à beleza feminina ou reforçar ideologias dominantes da sociedade daquela época. Com o nu feminino, a mulher era o corpo e a natureza oposta à cultura masculina que, por sua vez, era representada pelo próprio ato de transformar a natureza em uma obra de arte.
Segundo Laura Mulvey, teórica britânica especializada em cinema, o olhar masculino projeta há décadas sua fantasia sobre a figura feminina, estilizada. Há quarenta anos, ela foi a primeira a alertar que as mulheres estavam sendo simultaneamente olhadas e exibidas, “com sua aparência codificada para um forte impacto visual e erótico”. Para ela, as mulheres são objetos apenas nas pinturas atuais. Exatamente com esse gancho, surgiu um movimento (Guerrilla Girls) para defender mais artistas mulheres e menos nus femininos nos museus. Talvez seja por isso que até pintores como John Currin e Carroll Dunham, que produzem obras com mulheres nuas, não gostam de comentar muito porque escolheram essa temática para suas obras.
O pintor Kurt Kauper foi outro descobriu na pele como é complicado pintar o nu feminino. Estreou na Galeria Almine Rech com uma exposição solo intitulada “Mulheres”, na qual apresentou três nus femininos maiores do que o tamanho natural. Foi severamente criticado e a Imprensa americana rapidamente fez uma série de reportagens alertando sobre os perigos de um homem pintar mulheres nuas nos dias de hoje.
Com a missão de trazer a público a desigualdade de gênero e raça dentro da comunidade artística, o grupo Guerrilla Girls foi criado em Nova York, em 1985. Para manter o anonimato, as participantes do grupo vestem máscaras e utilizam pseudônimos que se referem a mulheres artistas falecidas (como Frida Kahlo e Käthe Kollwitz). O movimento surgiu quando o MoMA (Museu de Arte Moderna de Nova York) fez uma exposição chamada “An International Survey of Painting and Sculpture” (“Um panorama internacional da pintura e da escultura recente”) para mostrar o que existia de arte importante naquela época. A mostra foi um fracasso. Dos 169 artistas, apenas 13 eram mulheres e não havia nenhuma artista negra.
Para quem olha a igualdade de gênero no universo das artes, os números são alarmantes. Nos Estados Unidos, apenas 4% dos artistas da sessão de arte moderna são mulheres, mas 76% da nudez nas obras é feminina. Assim como acontece na arte, o cinema também registra dados assustadores: nunca uma mulher ganhou o Oscar de melhor diretora e 94% dos prêmios de roteiro vão para escritores homens. Conclusão: a realidade ainda é primitiva e animalesca.
As Guerrillas Girls nos provocam para pensar sobre o que consideramos arte, quais artistas estão legitimados a estarem nos museus, nos acervos e nas grandes exposições, além de quais narrativas que vamos adotar para construir os novos capítulos da história da arte. O movimento fez uma exposição no Brasil em 2017 e deixou a pergunta no ar: será que as artistas da atualidade terão que ficar nuas para conseguirem destaque nos museus brasileiros?
Precisamos reconhecer que temos importantes pintoras como Tarsila do Amaral, Anita Malfatti, Sofonisba Anguisolla, Rosa Bonheur, Mary Cassat, Artemisia Gentileschi, Angelica Kauffmann, Lee Krasner, Judith Leyster, Berthe Morisot, Suzanne Valadon, Remedios Varo, Elizabeth Vigée Le Brun, Frida Kahlo e Georgia O’Keefe. A torcida agora é para que esse número realmente aumente e que a igualdade de gênero chegue no universo da arte, independentemente se a obra mostra um corpo nu. Se desejar saber mais sobre um artista ou se tiver uma boa história sobre arte para me contar, aguardo contato pelo Instagram Keka Consiglio, Facebook ou Twitter.